sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Coelho acelera

John Updike, Coelho enriquece

Ainda há dias relatava aqui o prazer que me estava a dar a leitura do segundo tomo da tetralogia Coelho, de John Updike. Era, porém, um gosto agridoce: uma série que nos cai no goto, como esta o faz, não permite que descanso algum se nos abeire enquanto não lhe vislumbrarmos o fim. E, a julgar pelo tempo que entremeou as datas de edição do primeiro e segundo volumes, essa era uma empresa que ainda tardaria mais um ano até que pudesse chegar à próxima etapa, o volume Coelho enriquece que, alegremente, encontrei hoje em deambulação por uma Fnac.

Plano

A tua pele carrega uma vontade que se fortalece ao meu toque. Não é uma pele como as outras: parece controlar-te o corpo, mover na minha direcção a tua carne que logo se me molda, ao pouco que lhe posso dar, mas que de bom grado tornarei a oferecer outra vez.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Cardoso Pires numa televisão perto de si

José Cardoso Pires

Amanhã, pelas 23h30, haverá José Cardoso Pires na RTP2: «Este documentário aborda aspectos da vida e obra do escritor José Cardoso Pires, dados por ele próprio em entrevistas conduzidas por Clara Ferreira Alves durante o Outono e Inverno de 1997 e em depoimentos de algumas das pessoas que melhor o conhecem e lhe são próximas.»

Sonho de uma noite de Verão

Joni Mitchell

Assim: um pé e depois o outro, ambos nus, sobre uma rocha que, de quando em quando, recebia as ondas de um mar cuja imensidão o seu olhar media. Atrás de si, as roseiras bravas. O cheiro doce que delas emanava confundia-se com o eterno desdobrar das ondas, com um sol de final de tarde, com a aragem própria de um Setembro ainda recente. Alongou mais uma vez os olhos pelo mar e notou que estava só. Viu ao longe uma família de focas a desenhar-se contra o céu, acima das águas, desaparecendo pouco depois e ressurgindo adiante. Reconheceu então que uma mulher nunca está só quando olha o mar.
Inquietou-se depois perante a ideia de que teria algo para fazer; não a casa que estava limpa, e também tinha comida no frigorífico suficiente para uma semana. Deixou-se ficar. Não havia nada nem ninguém à sua espera. Partiu quando já só uma réstia de dourado planava sobre as águas, apercebendo-se apenas no caminho de casa do real fundamento da sua inquietação: não sabia o que fazer até à chegada da hora em que o cansaço a levaria a procurar a cama. Não voltaria a rever os filmes antigos que a tinham acompanhado durante os nove anos que entretanto haviam passado sobre a edição de Taming the tiger, e tão pouco esperava encontrar conforto nos livros que conhecia de cor. Encontrava-se sozinha; Chaplin e Bergman haviam levado Kipling e Yeats a tomar um copo. Sentou-se por isso ao piano. Os seus dedos principiaram a arrancar dele padrões que exprimiam na perfeição aquele final de tarde. E porque nada mais tinha com que se inquietar (- A casa está limpa, e tenho comida no frigorifico suficiente para uma semana), decidiu prosseguir. Nasceram ao todo sete padrões diferentes, um para cada dia da semana, aos quais chamou de “One week last Summer”. Deve ter fumado um cigarro a seguir. Havia terminado a parte ‘durante os nove anos que entretanto haviam passado’.
Provavelmente não o sabia ainda. O contar dos dias era longo e Joni Mitchell havia anunciado a sua irrevogável saída de cena com a compilação Travelogue (2002). No entanto, quando recebeu um telefonema de Jean Grand-Maitre, director artístico do Ballet de Alberta, era quase certo que as possibilidades se haviam tornado em génese. Sabia-o agora. Grand-Maitre falou-lhe da eventual realização de Dancing Joni (mais tarde rebaptizado de The fiddle and the drum), um bailado que teria por base algumas das suas canções. Joni gostou da ideia e subiu a parada: não era apenas às canções que iria regressar; ocupar-se-ia também da mise en scène. Pegou para isso em algumas telas que tinha planeado expor em breve e juntou-lhe duas canções: “If” e “If Had a Heart I'd Cry”. Shine era agora uma evidência.
Seguiu-se a materialização. Editado no passado mês de Setembro, Shine marca o regresso de Mitchell às inquietações político-sociais – largamente evidenciadas no álbum Dog eat dog (1985), e em canções como “Turbulent indigo” (Turbulent indigo, 1994), “Banquet” (For the roses, 1972) e “The fiddle and the drum" (Clouds, 1969) –, que agora se vêem assentes em frases musicais onde a forma é quase inexistente, e onde a voz, profunda, se acha num misto de ira e esperança. Por vezes, as melodias não são mais do que panos de fundo sobre os quais proliferam palavras que se desdobram entre o real e o imaginário, obrigando o ouvinte a ligar os pontos entre sugestão e realidade. “This place”, por exemplo, parece lidar com a história de um urso que, uma vez por outra, ronda a sua casa, uma imagem que poderia servir de reforço a “One week last Summer”, quando na realidade nos remete para a diminuição dos habitats naturais; a balada “Strong and wrong" poder-se-ia, num primeiríssimo contacto, encaixar na veia romântica pela qual Mitchell é mais conhecida, porém, frases como «Onward Christian soldiers...» logo se apressam a encaminhar o ouvinte para a religião enquanto fomentadora da guerra, para a troca do amor espiritual e romântico por outras grandezas – assim se afiguram a Mitchell – menos laudáveis.
Ao enveredar por esse desdobramento, Mitchell parece querer instigar o ouvinte à participação cívica mas, a forma como o faz limita consideravelmente o impacto da mensagem. As letras raramente saem do registo panfletário – “If”, cujo texto se serve de um poema de Rudyard Kipling, é a grande excepção – e existe uma separação demasiado radical entre conceitos tão difusos como difusa – e confusa – é a percepção colectiva das fronteiras entre o “Bem” e o “Mal” – talvez porque nada tenha sido sentido de uma maneira impessoal ‘durante os nove anos que entretanto haviam passado’; talvez porque a parte jamais poderá julgar o todo. Assim, o que era verdade – entendemo-lo nós – para canções que abordavam, não as largas avenidas, mas as lúgubres esquinas do amor romântico, deixa de o ser quando o objecto retratado extravasa as fronteiras do pessoal. Perdoar-se-ia, contudo, este passo pejado de ingenuidade – são coisas que se perdoam a quem, talvez ainda embutido do espírito da década de sessenta, conserva os sonhos da juventude –, não fosse a qualidade destes textos ser manifestamente inferior à dos textos incluídos nos álbuns anteriores. Neste ponto, Shine é, de facto, um rude golpe para quem até agora seguia a velha máxima que dizia que os álbuns de Mitchell se lêem primeiro e ouvem depois.
Resta-nos, em jeito de consolo, o brilhantismo dos temas “One week last Summer”e “Night of the iguana”; o momento em suspenso que é “Shine”, a audácia de “Hana” (talvez o momento esteticamente mais próximo de Dog eat dog) e a certeza de que uma Joni Mitchell em baixo de forma continua, ainda assim, a situar-se muito para além dos seus pares.

Joni Mitchell, Shine
Joni Mitchell, Shine (Hear Music, 2007)
Escrito em 2007 para o
Bodyspace.

Música em imagens II

Segunda parte de uma lista pictórica que reúne as minhas capas de discos favoritas. Algumas encerram discos soberbos; outras nem por isso.

Coldplay, A rush of blood to the head (2002)Coldplay, X & Y (2005)Comus, First utterance (1971)
Cream, Disraeli gears (1967)The Datsuns, Smoke and mirrors (2006)The Dave Brubeck Quartet, Time out (1959)Dave Douglas Quartet, Leap of faith (1999)
Dave Matthews Band, Before these crowded streets (1998)David Bowie, The rise and fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars (1972)David Bowie, Aladdin Sane (1973)David Bowie, Low (1977)
David Bowie, Heroes (1977)David Bowie, Tonight (1984)David Sylvian, Secrets of the beehive (1987)The Dead 60's, The Dead 60's (2005)
Dead Can Dance, Dead Can Dance (1984)Dead Can Dance, The serpent's egg (1988)Dead Can Dance, Aion (1990)Dead Can Dance, Into the labyrinth (1993)
Death from above 1979, You're a woman, I'm a machine (2004)Depeche Mode, A broken frame (1982)Depeche Mode, 101 (1989)Depeche Mode, The Singles 81/85 (1998)

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

As diferentes faces de um mesmo jogo

José Donoso, Casa de campo

Tudo se apresentava como sempre fora. Marulanda, a casa senhorial dos Ventura y Ventura, continuava a impor-se na paisagem enquanto única infracção ao carácter plano desta. Havia ainda a descontinuação que se fazia anunciar primeiramente na vedação constituída por lanças com pontas de ouro e depois no tamanho da própria casa, com as suas inúmeras divisões, uma delas dotada de um enorme fresco ‘trompe l’oeil’ onde o onírico e o real se misturavam quais diferentes faces de um mesmo absoluto. Esta descontinuação demarcava, ou pretendia demarcar, a fronteira entre tudo aquilo que era sujo, mau, inferior e exterior, e tudo aquilo que, durante os três meses de Verão que a família (uma matriarca, seis casais e um total de trinta e cinco filhos, primos e irmãos) lá passava, se coadunava com a sua posição social. Porém, por debaixo desta imensa casa e do enorme poder detido pelos Ventura y Ventura, “donos de uma província inteira”, estava o ouro comprado aos nativos, claramente de condição inferior, sujos e alegadamente antropófagos, armazenado numa pequena e mal iluminada cripta. Por debaixo das convenções estava um descomedimento de decadência e depravação que cedo tomava forma na brincadeira burlesca levada a cabo pelas crianças a que José Donoso, enquanto autor e narrador, e levando em consideração a afirmação de Paul Valéry que dizia ser incapaz de escrever um livro com uma frase do tipo “A marquesa saiu às cinco”, denominou de, nem mais, “A marquesa saiu às cinco”. Somavam-se-lhe os roubos, as traições, a pequena intriga. Os lacaios, que eram substituídos todos os anos, eram o braço armado: repreendiam, humilhavam e abusavam sexualmente das crianças que incorriam num qualquer incumprimento, fazendo-o sem contudo deixar marcas que levassem os patrões a tomar medidas e, nesse caso, a subverter o bom funcionamento da casa.
Nesse Verão, porém, a tradição seria quebrada: os Ventura y Ventura, acompanhados dos seus lacaios, decidem fazer um passeio a um local edénico deixando para trás as crianças que ficam entregues a si mesmas durante um dia. Estas, crendo que os adultos não mais voltarão, logo se iniciam em actos vertiginosos como o sejam o roubar do ouro da família, o alagar das lanças da vedação ou o transfigurar-se com a ajuda dos vestidos e perfumes dos pais.
José Donoso, sempre enquanto autor e narrador, instala assim o clima que pretende usar como metáfora para um Chile sob a ditadura de Augusto Pinochet. O absoluto faz-se directamente pela crónica daquele Verão na vida dos Ventura y Ventura e indirectamente pela alegoria ao panorama social e político do Chile nos anos ’70. Contudo, este romance de Donoso é ainda sobre a escrita de romances e as convenções que tendem a conduzir ao mimetismo literário. Neste ponto não raras as vezes em que o autor e narrador se auto-impõe na história enquanto figura omnipotente: «Por esta altura da minha narração, os meus leitores estarão talvez a pensar que não é de ‘bom gosto’ literário que o autor puxe, a cada instante, a manga de quem lê para lhe recordar a sua presença, semeando o texto com comentários que não passam de relatórios sobre o discurso do tempo ou a alteração de cenografia» (p.47); «Os meu leitores estarão a perguntar-se qual seria o segredo que produziu esta ruptura entre irmãos e a acusar o escritor de utilizar a desacreditada artimanha de reter informação com o fim de aguçar a curiosidade do leitor» (p.92). Ao fazê-lo, Donoso justapõe as técnicas realistas e pós-modernas: a discrepância entre a arte e a realidade, o artifício que serve para retratar a real. A ficção admite que as convenções, aceites como tal, dêem origem a outras histórias paralelas à dos Ventura y Ventura, enquanto a estrutura motiva o interesse pelo jogo que Donoso nos propõe: um jogo onde, sabemos de antemão, é ele quem dá as cartas e ditas as regras.

Referência bibliográfica:
José Donoso, Casa de campo. Lisboa: Cavalo de ferro, 1.ª edição, Março de 2008, 440 pp. (tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu; obra original: Casa de campo, 1979).

For you I will be a ghetto jew

Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo

For you
I will be a ghetto jew
and dance
and put white stockings
on my twisted limbs
and poison wells
across the town

1. Carlos de Oliveira, Sobre o lado esquerdo
2. Leonard Cohen, The genius (For you I will be a ghetto jew) - excerto

terça-feira, 23 de setembro de 2008



Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare sieze the fire?

And what shoulder, & what art.
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand? & what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And watered heaven with their tears,
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

1. Guilherme Marcondes, Tyger (2006)
2. William Blake, The tyger (1794)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Led Zeppelin: Assim se fez o rock

Led Zeppelin: John Paul Jones (esq.), John Bonham (centro sup.), Jimmy Page (centro inf.), Robert Plant (dir.)

Em 1967, o jornal Melody Maker apresentava a sua lista dos mais excitantes novos guitarristas. À luz dos anos que entretanto passaram, nomes como Eric Clapton (The Yardbirds, John Mayall Blues Breakers, Cream, Derek and the Dominos), Jeff Beck (The Yardbirds, Jeff Beck Group), Jimi Hendrix (Experience), Pete Townshend (The Who) ou Jimmy Page (The Yardbirds, New Yardbirds, Led Zeppelin), parecem não causar grandes discordâncias. No entanto, se a maioria desses guitarristas tinha já, por essa altura, gravado obra meritória, um havia que era realmente uma aposta. O nome de Jimmy Page circulava abundantemente nas bocas dos ‘conaisseurs’, é certo, mas, à luz do que hoje se sabe, não passava ainda de um músico à procura de uma voz própria e, não menos importante, de um veículo que lhe permitisse desenvolver criativamente a tradição musical estadunidense que então estava em voga em clubes como o Pink Flamingo, uma espécie de CBGB londrino (ambos começaram por dedicar-se à country, ao bluegrass e ao blues antes de abrirem as portas a outros géneros) que, nessa década, pelo simples facto de atrair todo o tipos pessoas e convidar a todo o tipo de experiências – viam-se desde marinheiros à procura de companhia até músicos que, daí a pouco, se tornariam nas novas referências – era tão obrigatório para a comunidade blues/jazz, quão obrigatórios se haviam tornado para a comunidade psicadélica sítios como o ‘Ally Pally’ (Alexandra Palace) ou o UFO. Tal como no CBGB, também no Pink Flamingo a audiência se confundia com o palco – era uma comunidade de músicos que se revezava. Jimmy Page fazia parte dessa comunidade e não tardou a ser convidado, enquanto músico adicional, para tocar com nomes tais como Donovan Leitch, The Kinks, The Who, Them, The Pretty Things ou Herman’s Hermits, antes de integrar uns Yardbirds moribundos que, às mãos de um guitarrista com créditos por firmar, se transformariam nos Led Zeppelin.
Inicialmente apelidados de New Yardbirds devido a obrigações contratuais, os Led Zeppelin eram, porém, uma banda inteiramente diferente dos originais Yardbirds. Tinham ainda como grande referência o blues do delta do Mississipi, contudo, e porque Londres vivia os anos dourados do rock, estavam dispostos a correr riscos. Tinham-se juntado a Page, Robert Plant, na altura um ilustre desconhecido, John Paul Jones e John Bonham, ambos músicos de estúdio de primeiríssima água (Jones foi uma presença importantíssima em Sunshine superman (1966), de Donovan Leitch, e, ainda que não creditado, em Their satanic majesties request(1967) dos Rolling Stones).
O burburinho instalava-se. Lançado em 1969, o álbum epónimo apanharia, ainda assim, todos de surpresa. Obra basilar, Led Zeppelin reunia de forma exemplar o rock (“Good times bad times”, “Dazed and confused” e “How many more times” – esta última bem ao estilo de uns Cream, mas com a matiz inconfundível dos Led Zeppelin), a country (“Babe, I'm gonna leave you” – a canção com que Plant terá feito o seu ‘exame de admissão’ – e “Black mountain side”), a pop (“Your time is gonna come”) e até um exercício de proto-punk (“Communication breakdown”). A música popular moderna conhecia um outro enorme capítulo da sua história: o rock ganhava o seu paradigma. No processo, o grupo fez aquilo que era comum fazer-se do outro lado do Atlântico. Desde há muito que os ‘bluesmen’ se pilhavam mutuamente, pelo que, em 1969 era já impossível dar crédito a um ou outro artista por ter escrito esta ou aquela canção. Assim, ainda que tenham sido processados alguns anos mais tarde, os Led Zeppelin não se coibiram de pilhar, de forma contínua, a Blind Willie Johnson, Bukka White, Howlin' Wolf, Muddy Waters, Robert Johnson, e também a Bert Jansch (Pentangle), Davey Graham, John Fahey ou a Owen Hand. Escusado será dizer que os Led Zeppelin ganhariam em tribunal. Dir-se-ia que o grupo samplava em vez de pilhar, uma vez que o material se transformava nas suas mãos.
O segundo volume seguir-se-ia nesse mesmo ano. A receita era em tudo semelhante à do seu antecessor: música tradicional estadunidense levada a passear com o pedal do acelerador posto a fundo. Era uma confirmação, um registo que lhes permitia solidificar a posição enquanto se preparavam para mudar as regras do jogo que eles próprios tinham inventado. Assim, Page e Plant refugiar-se-iam na localidade galesa de Bron-yr-Aur a fim de escreverem o tomo seguinte. Abriam a janela e à sua volta apenas viam ovelhas que, de quando em quando, se chegavam mais perto da casa onde viviam e trabalhavam. Cada um fazia a sua própria linha de cocaína (não existem indícios que comprovem o envolvimento das ovelhas em tais práticas); tinham conta aberta numa loja onde, impreterivelmente, levantavam a diária de sidra; e descobriram uma velha espingarda que passaram a apontar aos esquilos que se achavam nas redondezas – dizem que, talvez por causa da sidra, nunca acertaram em nenhum.

Da esquerda para a direita: John Paul Jones, Robert Plant e Jimmy Page

Stairway to Heaven

Led Zeppelin III (1970) seria diferente de tudo o que a banda havia feito até à data: o rock bombástico que havia predominado nos álbuns anteriores via-se agora ladeado por momentos pastorais, naquilo que terá sido uma espécie de teste para a concretização de Led Zeppelin IV (1971 – também conhecido por ‘Four symbols’ ou ‘Zoso’, por causa das runas adoptadas por cada um dos elementos enquanto símbolos pessoais. Ou melhor: apenas Jones e Bonham adoptaram runas já existentes, uma vez que tanto Page como Plant decidiram encomendar as suas…). Com efeito, o quarto álbum do grupo volta a unir os ambientes bucólicos da paisagem campestre de Hampshire com a trepidação frenética do rock zeppeliano. Porém, a sua arquitectura é mais certeira, a escolha de canções agradavelmente mais concisa e o resultado mais monolítico. Estranhamente, Led Zeppelin IV era uma obra desprovida de nome e de assinatura. Seguindo aquilo que os Beatles haviam feito no seu ‘White album’ (1968), os Led Zeppelin não só se recusaram a baptizar o álbum (Led Zeppelin IV é apenas a designação mais comum) como foram férreos na sua vontade de que a capa não possuísse quaisquer inscrições. “O génio de Jimmy Page que as pessoas tendem a esquecer tem a ver com sua visão punk ‘anti-establishment’”, disse Jack White (White Stripes, The Raconteurs) à revista Uncut (edição de Julho de 2006). Page dizia das suas: “Nomes, títulos e coisas dessas não significam nada […] O que importa é a nossa música.”
O cenário da escrita e posterior gravação voltava a ser o oferecido pela casa em Bron-yr-Aur. Page e Plant continuavam a ordenar linhas de cocaína, a beber sidra e a atirar sobre os pobres dos esquilos. Jones e Bonham juntar-se-lhe-iam mais tarde, exactamente uma semana antes do estúdio móvel dos Rolling Stones chegar, semana essa em que ensaiariam o material já escrito e tentariam desenvolver outras ideias enquanto banda. Contudo, quando o estúdio móvel chegou, o grupo tinha ainda muito trabalho de composição pela frente. As ideias eram gravadas pouco depois de surgirem; algumas resultariam em canções que podemos ouvir em Led Zeppelin IV, enquanto outras, à altura ainda incompletas, apenas veriam a luz do dia em Physical graffiti (1975). Haviam ainda algumas especificidades em relação ao som que Page procurava. Tentavam-se várias formas de captar o som de uma guitarra; Plant era obrigado a cantar a mesma canção vezes sem conta, de forma a delimitarem-se entoações, harmonias e tempos. Uma destas especificidades mais conhecidas é o som de bateria que abre “When the levee breaks”. Aquela batida prodigiosa, uma das mais libidinosas de todo o rock e a primeiríssima a ser samplada pelos Beastie Boys (em “Rhymin’ and stealin’”), viu-se envolta naquela reverberação que tão bem a distingue ao ser gravada nas escadas da casa, colhendo assim a gravação também o próprio ambiente que rodeava o espaço. Conscientes ou não disso, os Led Zeppelin estavam a transformar as ideias que Edgard Varèse (1883-1965) havia utilizado no seu Poème eléctronique (1958), enquanto música que deveria interagir com o espaço envolvente, no caso um pavilhão de Le Corbusier, em algo utilizável em discos populares. Outros lhes seguiriam o rasto: os Joy Division em Closer (1980); os Arcade Fire em Neon bible (2007); ou até os ‘nossos’ Madredeus em Os dias da Madredeus (1987).
Mas nem só de referências para o futuro se fazia Led Zeppelin IV. “The Battle of Evermore” e “Going to California” faziam a ponte para o álbum anterior, no qual o grupo procurava de alguma forma igualar a música dos Crosby, Stills & Nash e de Joni Mitchell. A letra de “Going to California” era bastante explícita: “Someone told me there's a girl out there / With love in her eyes and flowers in her hair […] They say she plays guitar and cries and sings”. Robert Plant diria alguns anos mais tarde que “quando se está apaixonado por Joni Mitchell é imperioso que se escreva sobre ela de vez em quando”. E se Joni Mitchell estava do outro lado do Atlântico, o mesmo não acontecia com Sandy Denny (Fairport Convention, Fotheringay). Depois de ter escrito a letra de “The battle of evermore”, Plant percebeu que iria necessitar de outra voz. Sandy aceitou e, segundo Plant, «resolveu aquilo em quarenta e cinco minutos».
Led Zeppelin IV completar-se-ia com canções rock tipicamente zeppelianas: o deboche de “Black dog” – “Hey, hey, mama, said the way you move / Gonna make you sweat, gonna make you groove”; a combustão espontânea de “Rock and roll”; o lado Tolkiano de “Misty mountain hop”; a explosão rítmica de “Four sticks”; e a pretensão musical e lírica de “Stairway to Heaven” que se tornaria no grande ‘tour de force’ zeppeliano. No dia anterior à chegada do estúdio móvel, Bonham e Plant haviam saído. Page e Jones haviam ficado na Headley Grange a fim de organizarem as várias partes que o guitarrista havia composto. O projecto assumia proporções épicas enquanto por toda a casa se podiam ouvir as diferentes partes a formar um todo uno e indivisível. Existem ‘bootlegs’ que transmitem bem o ambiente vivido nessas poucas horas: guitarrista e baixista trabalhavam a ligação para o solo de guitarra; Jones tentava inserir teclados; Page gritava, “Deves estar maluco!”. Plant e Bonham regressavam. O vocalista sentava-se à frente da fogueira e a letra, talvez por causa da sidra, chegava até ele vinda vá lá saber-se de onde. A sua mão pegou num lápis e, de repente, estava a escrever: “There's a lady who's sure all that glitters is gold / And she's buying a stairway to heaven.”

Jimmy Page e Robert Plant

Dazed and confused

The Song Remains the Same” era um embuste. Em vez de repetirem a receita de Led Zeppelin IV, os Led Zeppelin revelaram uma nova face da sua criatividade musical com Houses of The Holy (1973). Este abria todo um leque de novas possibilidades, desde o funk descompassado de “The crunge”, até às ressonâncias progressivas de “The rain song” e “No quarter”, passando ainda pelo balanço reggae de “D'yer mak'er”. Mais do que um risco, Houses of The Holy era a certeza de que, então, tudo era permitido aos Led Zeppelin. De resto, a liberdade que se sente em Houses of The Holy apenas encontrava paralelo na forma como o grupo vivia as suas inúmeras digressões: a sidra dava lugar à vodca; as linhas de cocaína continuavam em cima da mesa de vidro. O grupo remodelava os hotéis por onde passava; os seguranças faziam a lei.
Por alturas da edição de Physical graffiti, os Led Zeppelin eram já a maior banda de rock do mundo, e Physical graffiti, à imagem do seu predecessor, adquiriria o estatuto de fotografia de época. Os quinze temas dividiam-se por dois discos e em dois grandes grupos: as canções que haviam sido recentemente compostas e as canções que tinham sido deixadas de fora dos alinhamentos dos álbuns precedentes. Seria, com efeito, o canto do cisne da banda no que diz respeito à excelência.
Presence (1976) e In through the out door (1979) assinalariam a decadência causada pelo infortúnio (o grave acidente rodoviário da família Plant e a morte de Karac Plant, filho de Robert, devido a uma infecção respiratória) e pelo crescente consumo de drogas. Em In through the out door, os Led Zeppelin valiam-se dos esforços sóbrios, mas insuficientes, de Plant e Jones. A nota ‘Dear John’, que podemos encontrar na capa, seria profética. Com a morte de Bonham, em 1980, os Led Zeppelin estavam de saída. Os esquilos agradeciam.

Led Zeppelin, Mothership
Escrito em 2008 para o Bodyspace, a propósito da edição da compilação Mothership (Atlantic, 2007).

domingo, 21 de setembro de 2008

Música em imagens I

Esta é a primeira parte de uma lista pictórica que reúne as minhas capas de discos favoritas. Algumas encerram discos soberbos; outras nem por isso.

4hero, Play with the changes (2007)13th Floor Elevators, The Psychedelic Sounds of 13th Floor Elevators (1966)Affinity, Affinity (1970)
Air, The virgin suicides (2000)Air, 10,000hz legend (2001)Al di Meola, Orange and blue (1994)Ali Farka Toure & Toumani Diabaté, In the heart of the Moon (2005)
Alla Polacca, Not The White P? (2003)Almuadem, Nimrodel (2007)The Amazing Blondel, Evensong (1970)
Anais Mitchell, The brightness (2007)Andrew Bird, Weather systems (2003)Andrew Bird, Armchair apocrypha (2007)Andrew Lloyd Webber & Tim Rice, Jesus Christ Superstar (1973)
Andromeda, Andromeda (1969)Anne Briggs, Anne Briggs (1971)Antony and the Johnsons, I am a bird now (2005)Arcadium, Breathe Awhile (1968)
Archer Prewitt, Wilderness (2005)Architecture in Helsinki, Places like this (2007)Art, Supernatural fairy tales (1969)Arzachel, Arzachel (1969)
Ash Ra Tempel, Ash Ra Tempel (1971)Bakerloo, Bakerloo (1968)The Band, Music from Big Pink (1968)
Banda do casaco, Dos benefícios de um vendido no Reino dos Bonifácios (1974)Battles, Mirrored (2007)The Beach Boys, Pet sounds (1966)The Beach Boys, Wild honey (1967)
The Beach Boys, Surf's up (1971)The Beatles, Rubber soul (1965)The Beatles, Revolver (1966)The Beatles, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967)
The Beatles, The Beatles (1968)The Beatles, Abbey Road (1969)Bee Gees, First (1967)Big Brother & the Holding Company, Cheap Thrills (1968)
Björk, Vespertine (2001)Black Rebel Motorcycle Club, Howl (2005)Black Sabbath, Vol. 4 (1972)Black Sabbath, Never say die! (1978)
Blind Faith, Blind Faith (1969)Blonde on Blonde, Contrasts (1969)The Blue Nile, A walk across the rooftops (1983)Blur, Parklife (1994)
Blur, The great escape (1995)Blur, Think tank (2003)Bob Dylan, The times they are a-changin' (1964)Bob Dylan, Slow train coming (1979)
Brand X, Unorthodox behaviour (1976)Brian Eno, Another green world (1975)Brian Eno & David Byrne, My life in the bush of ghosts (1981)Buffalo Springfield, Again (1967)
Camel, Mirage (1974)Campo di Marte, Campo di Marte (1973)CAN, Tago mago (1971)CAN, Ege bamyasi (1972)
Caravan, In the land of grey and pink (1971)Caravan, For girls who grow plump in the night (1973)Carcass, Swansong (1996)
The Chemical Brothers, Exit Planet Dust (1995)The Chemical Brothers, Dig your own holeThe Chemical Brothers, Surrender (1999)The Chemical Brothers, Come with us (2002)
Chick Corea, Friends (1978)Chick Corea Elektric Band, Inside out (1990)Chromeo, Fancy footwork (2007)The Cinematic Orchestra, Man with a movie camera (2003)