segunda-feira, 27 de abril de 2009

Pink Floyd: Por falar nisso...

Caleidoscópios, viagens espaciais, porcos esvoaçantes e vacas de batuta na boca. Depois de décadas de rancor, processos judiciais e comentários pouco próprios na imprensa especializada, os Pink Floyd não conseguem deixar de celebrar a sua obra. Após a luxuosa reedição, em Setembro do ano passado, do seu álbum de estreia, The piper at the gates of dawn, voltam agora ao ataque com uma caixa que reúne a totalidade do seu catálogo gravado em estúdio (mensagem para os nossos mui prezados amigos puristas: sim, existem pelo meio quatro faixas gravadas ao vivo): dezasseis discos (formato mini-LP), vinte e sete anos de produção musical, onze horas de música. O Bodyspace não se assustou e foi à procura daquilo que jaz por trás deste Oh by the way.

Pink Floyd, Oh by the way

Let there be more light

O Verão decorria como todos os Verões, lânguido e indolente. Embora os soldados morressem nas praias do Pacífico, houvesse racionamento de açúcar e gasolina e fosse difícil conseguir pneus novos para carros velhos, o Verão escoava-se. Tempestades estivais estalavam e desfaziam-se com súbita fúria, o povo lia ansiosamente os jornais, a fim de saber como se comportavam os ‘rapazes’, e verificou-se uma transformação na face da América: viam-se uniformes por todo o lado. Era difícil notar-se outra coisa que não fosse panamás brancos nas ruas principais das cidades costeiras. Porém, o Verão decorria, e, apesar de tudo, encontravam-se ainda alguns vestígios de paz e a guerra continuava a parecer muito longínqua.
Nas praias da América, os gira-discos faziam ouvir as canções populares. As raparigas estendiam na areia o bronzeado dos seus corpos, frescos e jovens, com dentes de um branco alvíssimo e pernas bem torneadas; trauteavam as canções dos discos, torciam palhas em garrafas vazias de Coca-Cola e escutavam o rumor distante das ondas que quebravam na areia. A guerra parecia muito, muito longínqua. Os parques de diversões arranjavam maneira de as grandes rodas nunca cessarem de girar, encontrava-se gasolina no mercado negro e os proprietários dos talhos tornavam-se mais ricos e mais obesos vendendo carne à socapa a clientes privilegiados. Uma vez por outra alguém estremecia ao ver uma estrela dourada na janela de um vizinho ou compadecia-se ao saber que um transporte fora metido a pique, que ninguém escapara e que um filho de um amigo ou de um parente se encontrava a bordo. Mas as reuniões paroquiais prosseguiam, os bailes demoravam-se, as raparigas e os rapazes usavam popas no cabelo, o nó Windsor tornava-se popular e as saias eram agora mais curtas. O Verão decorria. A guerra não parecia ser, à distância, apesar de tudo, o inferno de que se falara.
A América crescia. O Verão parecia passar como outrora: os mesmos corpos, as mesmas pernas. As mãos continuavam a acariciar faces, os dedos tocavam o côncavo das gargantas, os lábios afloravam orelhas e, subitamente, descendo até à abertura dos vestidos, chegavam ao bronzeado da carne. Mas as canções haviam sido substituídas pelas improvisações em regime bebop. Em 1948, Jack Kerouac conhecia Allen Ginsberg e William S. Burroughs. Nascia uma nova geração que se achava em fuga, cansada de lutar contra um modelo de sociedade opressivo. Os escritores beat (Allen Ginsberg, Gregory Corso, Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti, Peter Orlovsky e William S. Burroughs) davam-lhe voz. A estrada tornava-se num modo de vida. Muitos eram aqueles que, tal como Kerouac o fizera e relatara em Pela estrada fora (1957), esticavam o dedo e partiam rumo à incerteza, às relações fugazes, às drogas; partiam à procura de novas experiências e significados.
As poetry readings estabeleciam-se enquanto acontecimentos. Seguir-se-iam os love in, manifestações de amor universal que juntavam milhares de hippies, ou hipsters, em torno de espectáculos multidimensionais que envolviam em estreita ligação, música, imagens e fragrâncias. Acontecia em São Francisco; ouvia-se The Grateful Dead, Jefferson Airplane ou Big Brother and the Holding Company, enquanto o horizonte, em franca expansão, se fazia de projecções, estroboscópios e luzes negras. Marshall McLuhan, um especialista em mass media, ajudava a definir a geração pós-beat ao dizer que os sons, as informações e os impulsos eléctricos e electrónicos permitiriam, na sociedade tecnológica moderna, reencontrar a noção original de comunidade, de tribo.
Entretanto, o Reino Unido perscrutava já a sua antiga colónia. Robert Wyatt (The Soft Machine, Matching Mole; os Soft Machine tinham nascido após uma curta estadia de S. Burroughs em casa dos pais do Wyatt, adoptando a formação o nome de um dos seus romances) declarava ao jornal Melody Maker em 1967: «Quase todos os grupos de música pop, aqui ou na América, fabricam indefinidamente sons e melodias para fazer consumir, sob formas mais ou menos novas, as mesmas emoções, facilmente identificadas e assimiladas pelo público. Queremos quebrar esta imagem e este conceito, reencontrar o espírito do jazz, ou seja, uma expressão autêntica, selvagem, mas desta vez nossa e não dos negros.»
O Psicadelismo inglês era mais ténue que o estadunidense: faltava-lhe esse grande móbil que era a guerra do Vietname. No entanto, também este tinha o seu alvo: o english way of living. E ainda que menos numerosa do que a comunidade psicadélica de São Francisco, a comunidade londrina nem por isso era menos activa. Tinha até as suas próprias lojas, as head shops, onde podia ouvir música, fazer trocas, conversar e fumar. Como Kerouac previra alguns anos antes em Os vagabundos do Dharma (1958), as influências orientais faziam, junto do círculo psicadélico (ocidentais), cada vez mais adeptos. Duas suecas, Ula e Gitta, institucionalizavam essa tendência na sua loja em Chelsea, a Antique Market, que, poucas semanas após a sua abertura, se tornaria no templo londrino do vestuário in. Proliferavam os saris indianos e os casacos afegãos; a cítara e a tabla, redescobertas por George Harrison (The Beatles, The Traveling Wilburys) e Brian Jones (The Rolling Stones), faziam sombra à guitarra e à bateria; e havia já muitas pessoas a cederem ao caril e à cozinha macrobiótica.
Os dias viviam à laia de quaisquer supervisões; os céus propagavam as ideias. As rádios-piratas mostravam a ‘nova música’ em programas como o Lucy fruit show, na Radio Caroline, ou o Perfumed garden, na Radio London. Este último, programado e animado pelo lendário DJ John Peel, misturava os nomes mais conhecidos (The Beatles, Big Brother and the Holding Company, Bob Dylan, The Grateful Dead, Jefferson Airplane, etc.) com outros ainda não editados e que Peel ia gravar directamente aos clubes da capital inglesa. Apareciam também as primeiras publicações hippie, de entre as quais se destacava o jornal International Times (IT). Este trazia à explosão psicadélica inglesa uma forma de estar, uma direcção. Era nas suas páginas que a comunidade hippie londrina podia encontrar um pedido de revisão de «uma legislação hipócrita» em relação ao uso de drogas: «Porquê favorecer a utilização do purple heart [pequeno comprimido à base de benzedrina muito utilizado pelos mods]? Porquê considerar a marijuana uma droga narcótica quando não é mais perigosa do que o álcool?»

Da esquerda para a direita: Roger Waters, Nick Mason, Syd Barrett e Richard Wright (1967)

Plano de evasão

O IT lançava o slogan: «Quando a música muda, as paredes da cidade tremem!» Londres achava-se recheada de clubes que a faziam tremer. O UFO havia sido o primeiro – de índole psicadélica – a abrir portas. Lia-se numa nota publicitária redigida por S. Miles, co-fundador do clube: «O UFO é o clube das pessoas que lêem o IT. Tentámos criar um ambiente diferente do dos outros clubes. Temos tocadores de cítara, grandes grupos de percussão africanos, projecções de filmes de [Luís] Buñuel ou de Marylin Monroe. David Marowitz apresentou aqui três peças de teatro, três sátiras políticas. Há free jazz e, evidentemente, grupos psicadélicos.» Com efeito, o UFO favorecia todas as formas de espectáculo susceptíveis de provocar abalos de consciência. Havia sessões de música experimental (gravada ou ao vivo), projecções de vanguarda pela Exploding Gallaxy e filmes de Andy Warhol, Mekas e Yoko Ono.
Para a abertura do UFO haviam sido convidados os Pink Floyd (Pink de Pink Anderson; Floyd de Floyd Council – dois bluesmen da Georgia). Estes eram um dos primeiros grupos a brotar da fornalha psicadélica, de onde também provinham outros entretanto mais ou menos perdidos pelo avançar dos anos: Apostolic Intervention, Blossom Toes, The Crazy World of Arthur Brown (Carl Palmer passaria por lá antes de co-fundar, em 1970, os Emerson, Lake & Palmer), Sam Gospel Dream, Soft Machine (o então vocalista, Kevin Ayers, seria uma das principais referências do Psicadelismo britânico), Syn (grupo que viu nascer Chris Squire, o lendário baixista dos Yes), Tomorrow (com o debutante Steve Howe, mais tarde guitarrista dos Yes e dos Asia – lembram-se da guitarra flamenca em “Innuendo” dos Queen…?), etc. A honra era-lhes devida. Os Pink Floyd haviam sido revelados por John Hopkins, um outro co-fundador do IT, por ocasião do lançamento do jornal. Esta seria a primeira grande reunião da comunidade hippie, com os Pink Floyd em palco a apresentarem uma música e uma encenação que se coadunavam intimamente com o Psicadelismo.
À altura, o grupo estava ainda nos seus primeiros meses de existência. Syd Barrett havia-se juntado recentemente à formação que, até há poucos meses, lançava âncora no blues sob a designação de Architectural Abdabs (por vezes The Screaming Abdabs ou The T-Set), numa clara alusão à actividade social de Roger Waters, Nick Mason e Richard Wright, então estudantes de arquitectura na Escola Politécnica de Londres. Com a sua entrada, o interesse pelo blues começaria a decrescer na mesma proporção com que aumentava o interesse pela música electrónica e pela ficção científica. Depois do lançamento do IT, o grupo iniciaria uma ronda de concertos nos quais desenvolveria as suas próprias composições, muitas vezes levadas ao extremo por intermédio de improvisações que lançavam autênticos dilúvios sonoros sobre a assistência. Seguir-se-iam as participações em programas televisivos e a gravação do primeiro single com duas composições de Barrett: “Arnold Layne” e “Candy and a currant bun”. O disco teria boa aceitação, mas o formato nem por isso agradava a um grupo habituado a divagar por longas auto-estradas sonoras. A providência seria, no entanto, célere: Peter Whitehead filmaria a interpretação de “Interstellar Overdrive” – a viagem de uma nave interplanetária que, depois de atravessar os engarrafamentos em redor da Terra, mergulhava no infinito – para o seu documentário sobre a Swinging London, Tonite let's all make love in London (1967; a edição discográfica editada pela See for Miles em 1993, contém ainda a faixa “Nick’s Boogie” - uma preciosidade para todos aqueles que queiram aventurar-se nos primórdios do grupo).

Pink Floyd, The piper at the gates of dawn (1967)

Retrato do artista quando jovem

Os Pink Floyd chegavam ao Queen Elisabeth Hall, no dia a seguir ao da edição de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967) dos Beatles. O tempo escapava-se momentaneamente à clausura dos formatos irreversíveis. Numa espécie de premonição, Syd Barrett daria o melhor concerto da sua carreira. Manter-se-ia no proscénio durante a maior parte do espectáculo, envergando uma capa e esboçando, com um dos braços, gestos circulares ao jeito de Pete Townshend (The Who). Com a face fortemente iluminada, projectava uma sombra inquietante no ecrã colocado por trás do grupo. Nesse dia os Pink Floyd seriam apenas Syd Barrett, um Syd Barrett alucinante, trocista… talvez profético em relação a si próprio.
Paranóico, Barrett refugiar-se-ia em casa dos pais, em Cambridge. A sua saúde débil não era surpresa para os restantes músicos do grupo. À semelhança dos grandes românticos ingleses, Syd era consumido pelos seus delírios interiores, sendo-lhe cada vez mais árduo conciliar as exigências do grupo (concertos, ensaios e gravações) e as suas exigências pessoais, reguladas pelo LSD.
Depois da saída do segundo single, See Emily play (1967), o grupo ansiava pela gravação do seu primeiro álbum. Andrew King, empresário da banda, diria mais tarde: «A perspectiva de gravar parecia inspirar e avivar a criatividade de Barrett. Ninguém sabia ao certo se ele chegava com canções já feitas ou se as escrevia à socapa durante as sessões. Seja como for, escrevia muito rapidamente e desde que nos aproximássemos de um estúdio, as suas canções apareciam como por encanto.»
The piper at the gates of dawn (1967) seria a primeira colaboração entre o grupo e Norman Smith, produtor oficial do álbum. Tornava-se ainda mais claro que os LPs eram, para os Pink Floyd, o formato ideal, embora apenas “Interstellar Overdrive” – uma versão ainda assim menos exuberante do que a contida na banda sonora de Tonite let's all make love in London – ultrapassasse a barreira dos quatro minutos.
António Jorge Quadros, crítico de música do Phono, não tem dúvidas em afirmar que «o Shangri-La da revolução [musical psicadélica] é o (ainda) inesgotável álbum de estreia dos Pink Floyd». Com efeito, The piper at the gates of dawn é, talvez juntamente com os dois primeiros volumes da discografia dos Soft Machine, a melhor porta de entrada para a música psicadélica britânica. “Astronomy Domine”, uma violenta evocação sideral, estabeleceria per se as regras do que iria ser conhecido por space rock; enquanto “Chapter 24”, um canto místico retirado do I Ching, e “The Gnome”, uma pequena ladainha infantil sobre um fundo de vibrafone e caixa chinesa, marcariam várias gerações de músicos devido à sua aparente e deslumbrante fragilidade.
Na edição de Setembro de 2006 da revista Uncut, uma edição em parte dedicada ao desaparecimento de Barrett, muitos eram aqueles que reconheciam a sua dívida: «O Syd foi uma grande fonte de inspiração. As poucas vezes que o vi actuar no UFO e no Marquee, ficarão para sempre gravadas na minha memória. Ele era muito carismático e original» (David Bowie; ouçam a sua versão de “See Emily play”, presente no álbum Pin ups, de 1973); «Adoro as canções do Syd Barrett, especialmente aquelas que parecem inacabadas. […] Há alguns anos gravei uma demo caseira chamada Demo crazy. Não a mostrei a muitas pessoas porque não passava de uma colecção de esquiços gravados em quartos de hotel. Era, porém, fruto da minha admiração pelo trabalho de Barrett» (Damon Albarn: Blur, Gorillaz e The Good, The Bad & The Queen); «Adoro a sua música desde a minha adolescência» (Bobby Gillespie: Primal Scream).
A dois de Novembro de 1967, os Pink Floyd preparavam-se para enfrentar pela primeira vez a Costa Oeste estadunidense. Teriam pela frente um país dividido pela guerra do Vietname, um país feito das atitudes heróicas daqueles que gozavam de uma situação cómoda, que não se expunham à guerra, e do verdadeiro heroísmo sem glória dos que haviam sofrido os horrores da frente. A fim de prepararem melhor o concerto no incontornável Fillmore West, em São Francisco, os Floyd renunciariam uma digressão pelo Reino Unido, tendo por companhia Jimi Hendrix e os grupos Amen Corner e The Move. O resultado deste período sabático seria, contudo, algo desastroso. Dividindo o cartaz com Richie Havens e os Big Brother and the Holding Company, os Pink Floyd trocariam as voltas aos californianos. Estes – os californianos – esperavam reencontrar na música do quarteto britânico, a mesma tónica colocada na alegria de viver o momento presente. Todavia, os Floyd apresentariam uma música de contornos ásperos, cortantes, duros, vertiginosos. A segunda passagem pelo Fillmore, desta feita com os H. P. Lovecraft e os Procol Harum, apenas agravaria a má impressão por parte dos ‘filhos das flores’.

Da esquerda para a direita: Nick Mason, Syd Barrett, David Gilmour, Roger Waters e Richard Wright (1967)

Já de volta ao Reino Unido, o grupo tomava uma decisão: daí em diante contariam com cinco elementos. A primeira digressão por terras americanas havia precipitado a exaustão de Barrett, que agora se mostrava cada vez menos capaz de fazer face às exigências do grupo. De comum acordo, ficaria combinado que Barrett ingressaria ou deixaria o grupo sempre que lhe apetecesse e que se recrutaria um novo guitarrista-vocalista para cobrir as suas ausências. «Durante um mês, ensaiámos os cinco, o que era sem dúvida aquilo que queríamos. A nossa ideia era adoptar a fórmula dos Beach Boys: Brian Wilson juntava-se ao grupo quando o desejava [sendo na sua ausência substituído por Bruce Johnston]. Queríamos absolutamente, de uma forma ou de outra, conservar Syd Barrett no seio dos Pink Floyd. Mas ele deixou-se influenciar por uma quantidade de gente que não cessava de lhe repetir que ele era o único talento do grupo e que devia enveredar por uma carreira a solo», contaria Nick Mason ao Melody Maker em 1975. O quinto elemento, David Gilmour (ex-Flowers, ex-The Crew), diria de sua justiça em 1968: «Syd é um génio, mas está louco, clinicamente louco, e não por causa do LSD: foi sempre mais ou menos assim, o que é terrivelmente triste para nós que o conhecemos bem [Gilmour era amigo de infância de Barrett]. Por vezes consegue compor várias canções extraordinárias de seguida e toca de uma forma fascinante, sem que ninguém o possa igualar. Mas na maioria das vezes não faz nada de coerente e, nestas condições, é-lhe completamente impossível estar no palco. Às vezes avança simplesmente com a guitarra, senta-se e nem sequer põe a mão esquerda no braço do instrumento, limitando-se a arranhá-lo com a mão direita durante imenso tempo.» Em entrevista à Uncut (edição de Maio de 2007), Roger Waters revelava ter a certeza de que o LSD tinha apenas agudizado o declínio de Syd: «Ele já andava um pouco estranho. Certa vez, aquando de umas gravações que fizemos para o Top of the Pops [programa televisivo exibido no segundo canal da BBC, que se manteve no ar até Julho de 2006], começou a dizer coisas como: “O John Lennon não tem de fazer isto; por que razão terei eu?” […] A partir dessa altura [Junho de 1967] tudo começou a descambar. No final do 1968, ele já estava completamente fechado para o mundo. […] Um dia, quando íamos buscá-lo para um concerto, dissemos “Nah”, e seguimos em frente.»

Syd Barrett (1970)

Barrett afundar-se-ia nos seus próprios delírios, reaparecendo alguns meses depois quando uma secretária do agente dos Pink Floyd o descobriu a dormir num jardim público. Syd havia combinado com Norman Smith a gravação de, pelo menos, um álbum a solo por ano para a etiqueta deste (Harvest). Após contar com a participação de vários músicos, entre os quais Mike Ratledge e Robert Wyatt (ambos dos Soft Machine), o seu primeiro álbum a solo, The madcap laughs (1970), teimava em não avançar devido aos seus problemas recorrentes. Gilmour e Waters, todavia, sob a ameaça de Smith em não renovar o contracto a Barrett se este não apresentasse no prazo de duas semanas o material necessário para a concretização de um álbum, decidiriam eles mesmos produzir os seis temas que compõem o registo, tarefa que realizariam de forma espantosa em apenas três dias.
No seu próximo álbum, simplesmente intitulado Barrett (1970), Syd seria novamente auxiliado por antigos colegas seus, desta feita por Gilmour e Wright. O pesadelo, esse, mantinha-se inalterado: Syd continuava a viver como um misantropo convicto, sendo muito difícil para David e Richard tirá-lo da sua sala de estar (a mesma que aparece na capa do seu álbum de estreia), onde pintava, compunha e tocava.
Com o seu desaparecimento em Julho de 2006, havia novamente quem perguntasse: era ou não Barrett um músico provido de génio? Eduardo Mota, co-organizador do festival Gouveia Art Rock (festival anual dedicado exclusivamente à música progressiva), é bastante claro na sua opinião: «Parece-me que esse elemento trágico do seu percurso pessoal, em especial o desaparecimento prematuro, força o surgimento dessa auréola de genialidade comum a vários músicos. São exemplo disso Ian Curtis, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Judee Sill, Nick Drake, Shelagh McDonald e muitos outros. Por consequência, o conhecimento póstumo da obra destes assume quase sempre o carácter de revelação. Entramos no domínio da ‘Mitologia’. E cabe aqui repetir uma interrogação: Que imagem teríamos nós da obra desses músicos se não tivesse ocorrido o seu passamento temporão (físico ou mental), e continuassem a produzir trabalhos, alguns de qualidade inferior? Repare-se no caso inverso de Donovan (Leitch). Apesar de ter criado, na segunda metade dos anos ’60, uma obra discográfica importantíssima – indicando, juntamente com a Incredible String Band, o caminho que conduziria ao maravilhoso mundo da folk progressiva britânica da primeira metade da década seguinte –, quem fala hoje do escocês e o aponta como um grande inovador? Deveria ter ele falecido em 1970 de desastre rodoviário ou ensandecido com LSD em vez de continuar a gravar álbuns?» O saudoso Fernando Magalhães, antigo jornalista e crítico musical do jornal Público, tinha, já em 2003, uma opinião semelhante à de Eduardo Mota: «Incluo-me no grupo dos que acham Syd Barrett sobretudo uma personagem carismática cuja vida e morte conferiram a patine de génio. […] Basta escutar a caixa que foi editada há uns anos com a cobertura extensiva da música de Syd [Crazy diamond, 1994], para se perceber até que ponto lhe era penoso compor/cantar/tocar. São takes e takes inutilizados, voz e guitarra desafinados ou fora de tempo antes de se conseguir chegar a uma versão definitiva de cada canção. Um músico vale pelo que faz e produz e não pelos seus sonhos, por mais delirantes e coloridos que sejam. Dito isto, considero o The piper at the gates of dawn um excelente álbum e ouço com agrado os dois trabalhos a solo do Syd Barrett.»

Estelle vagueia pelas dunas

Oh mais!

A saucerful of secrets (1968) ilustrava o novo equilíbrio que se havia estabelecido no seio dos Pink Floyd. Waters e Wright assumiam a direcção artística, aproximando o quarteto da experimentação em grandes formatos e, simultaneamente, transportando-o para a década seguinte. Com efeito, embora houvesse ainda em A saucerful of secrets alguns momentos que relembravam os trejeitos psicadélicos de The piper at the gates of dawn (“Let there be more light”, “Corporal clegg” e “Jugband blues” - esta última ainda com Barrett), outros havia que projectavam o grupo em estéticas futuras (“Set the controls for the heart of the Sun” e “A saucerful of secrets”). No entanto, apesar dos sinais comprovativos de um certo amadurecimento estilístico, o grupo não estava ainda preparado para fechar de vez as portas à drug culture – a sua próxima obra assim o atestaria.
Gilmour, Mason, Waters e Wright tinham respondido ao convite do jovem realizador cinematográfico Barbet Schroeder. Deveriam escrever e gravar a banda sonora do seu próximo filme, intitulado More (1969), cujo motif provinha de uma citação do filósofo Carl Jung: «Em geral, para os homens, o inconsciente representa a alma sem rosto de uma mulher.» Disse Schroeder: «Para a gravação, os Floyd compunham a música durante a tarde, vendo o filme, e depois gravavam à noite, entre a meia-noite e as nove da manhã. […] Os Pink Floyd fizeram-me a música ideal. Mostrei-lhes o filme e pedi-lhes uma música que estivesse de acordo, sem lhes dar quaisquer directivas. Eles encontraram um elemento mágico impressionante e sobretudo o sentido do espaço… A tal ponto que tive de baixar o volume da música. A sua qualidade aniquilava literalmente algumas das cenas!»
More tornar-se-ia uma obra-chave do período pós-Swinging London. Os Pink Floyd captavam a essência da história de destruição pelo amor e pela droga – Estelle (Mimsi Farmer) fazia gato-sapato de Stefan (Klaus Grunberg), numa Ibiza pré-reggaeton –, em composições que revelavam um grupo em ascensão criativa. Pelo meio tinham ainda tempo para escrever “Quicksilver”, uma composição inspirada na musique concrète de Edgard Varèse, que, à luz de quem agora olha para trás, prenunciava e pronunciava já Ummagumma (1969).

Pink Floyd, Ummagumma (1969)

Canto de mim mesmo

Ummagumma não era apenas um nome esquisito; era também uma declaração de liberdade e um objecto paradigmático. Registo duplo, tinha algumas particularidades: apresentava gravações feitas ao vivo (o primeiro tomo fazia-se de novas versões de temas antigos) e em estúdio – um modelo nunca antes visto e que seria mais tarde adoptado pelos Soft Machine em Six (1973); e permitia, no segundo volume, a apresentação individual das diferentes visões dos quatro elementos: cada um tinha cerca de dez minutos para, preferencialmente a solo, mostrar o que valia – outro modelo também nunca antes visto e que faria escola nos Yes (Fragile, 1972), nos Emerson, Lake & Palmer (Works, Vol. 1, 1977) e nos ‘nossos’ Tantra (Mistérios e maravilhas, 1977).
Richard Wright abria as hostilidades com “Sysyphus”, uma peça escrita para mellotron e piano. Claramente inspirada em György Ligeti (Musica ricercata, 1953) e Pierre Boulez (Sonatas para piano, 1946-58), “Sysyphus” ia buscar ainda algumas influências à liberdade jazzística de McCoy Tyner e Cecil Taylor (note-se, por exemplo, a intensidade com que Wright pressionava as teclas do piano). Porém, estruturalmente, não há como negar a adopção de gramáticas mais antigas: a peça principia e finda com a mesma evocação: um majestoso motivo que Ludwig van Beethoven, por certo, não desdenharia.
Seguia-se-lhe Roger Waters. A pastoral “Grantchester meadows” logo dava vez à kafkiana “Several species of small furry animals gathered together in a cave and grooving with a pict”, onde, por meio de um habilidoso exercício de multi-dubbing, se fazia desaguar o material musical num imenso oceano de insectos liderados por um outro com esgares à Adolf Hitler. A loucura era brava, desbragada, mas não contagiosa: David Gilmour assinava “The narrow way”, o momento mais ‘normal’ do álbum; Nick Mason reintroduzia a erudição: “The grand vizier’s garden party” era uma espécie de Poème eléctronique (Edgard Varèse, 1958), que, à falta de melhor aplauso, levantava algumas pistas sobre o porquê de Mason se tornar, alguns anos mais tarde, no produtor de álbuns tão marcantes como Rock bottom (Robert Wyatt, 1974) e Shamal (Gong, 1976).

Pink Floyd, Atom heart mother (1970)

La vache qui regard

O álbum seguinte, Atom heart mother (1970), via os Floyd voltar ao formato tradicional de grupo de rock, ainda que desta vez com o acréscimo de uma fanfarra, seguindo assim as pegadas dos Deep Purple (Concerto for Group and Orchestra, 1969) e juntando-se aos Yes (Time and a word, 1970). Estávamos, pois, perante o sucumbir dos Floyd às modas da época, naquele que era o seu primeiro álbum, após a partida de Norman Smith, a ser concebido com a participação de alguém exterior ao grupo. Ron Geesin, orquestrador, produtor e entusiasta de técnicas de gravação inovadoras e da utilização da fita magnética enquanto instrumento de criação musical (produziria o belíssimo álbum de estreia de Bridget St. John, Songs for the gentle man), era um velho amigo que Waters havia reencontrado aquando da gravação da banda sonora de The body (1970). «Os produtores deste filme paramédico procuravam desesperadamente alguém capaz de lhes escrever uma banda sonora adequada. Entraram em contacto com Tony Gardner que depois alertou John Peel. Este telefonou-me visto saber que eu, por vezes, fazia filmes publicitários e documentários. Percebi que desejavam música com atmosfera e pensei imediatamente no Roger. Ele escreveu quatro títulos e eu fiz o resto. Depois propôs-me ajudar os Floyd a realizarem o seu novo álbum; queria que eu escrevesse os metais e os coros. Os Pink Floyd partiram para os Estados Unidos deixando-me uma fita. Quando voltaram, não sabiam exactamente o que queriam. Escrevi a partitura para o coro com a intervenção do Dave e do Rick. Depois, John Alldis, o director do melhor coro erudito deste país [o prestigiadíssimo John Alldis Choir], juntou-se-nos e terminou o projecto», disse Ron Geesin à revista Rock & Folk, em 1970.
A enorme quantidade de trabalho contida na suite “Atom heart mother” era facilmente perceptível. Estruturada em quatro partes, esta suite associava estreitamente o coro e os metais com a instrumentação tradicional do quarteto. Os Pink Floyd pareciam ter encontrado o seu denominador comum, depois de fundidas as veleidades de cada membro. Mas teria sido esta a melhor forma de o fazer? Não estariam eles a abdicar da virulência estética que caracterizava os seus registos anteriores?
Na outra face de Atom heart mother (eram os dias do vinil), a oferta era mais variada: a megalomania voltava a fazer das suas na porém bela “Summer '68”, contrapondo-se assim a simplicidade de “If” e “Fat old Sun”. Contudo, apenas em “Alan’s psychedelic breakfast” se cumpriam as boas promessas de Ummagumma. Este pequeno-almoço musical havia sido composto no ano anterior como parte inicial da peça The man, onde, numa longa suite de quarenta minutos, se retratava um dia na vida de uma pessoa comum. Ao nascer do sol, magnificamente expresso por uma engenhosa progressão visual e sonora, seguia-se o pequeno-almoço, o trabalho, o intervalo para o chá (em que todos os elementos do grupo paravam de tocar para tomar chá em pleno palco), o amor e, por fim, a noite (uma espécie de Days of future passed dos Moody Blues, portanto…).
A dois de Janeiro de 1971, os Pink Floyd eram convidados pelo coreógrafo Roland Petit a participar na Soirée Roland Petit. Este encontro seria visto pelos fãs franceses como o apogeu da degradação de um grupo que, depois de cair no academismo barroco em Atom heart mother, se deixava agora enlaçar pelas velhas glórias do Casino de Paris. Ao público francês faltava o distanciamento que agora, quase quarenta anos depois, nos apresenta uma visão diferente sobre um mesmo objecto. Atom heart mother abria uma época de excessos: o rock sinfónico encontrava a sua voz em grupos como os Camel, os Emerson, Lake & Palmer, os Genesis ou os Yes; os alemães ensaiavam na garagem de Karlheinz Stockhausen (Agitation Free, CAN, Cluster, Cosmic Jokers, La Düsseldorf, Faust, Guru Guru, Harmonia, Klaus Schulze, Kraftwerk, Neu!, Popol Vuh, Sergius Golowin, Tangerine Dream, Xhol Caravan); Alan Parsons convidava Edgar Alan Poe para jantar (Tales of mystery and imagination, 1975); os Canários sonhavam com António Vivaldi (Ciclos, 1974); os Gryphon tratavam Henrique VIII por tu (Gryphon, 1973); os Jethro Tull fundavam um jornal (Thick as a brick, 1972); o Melody Maker dizia que «se Richard Wagner fosse vivo quereria trabalhar com os King Crimson» (In the wake of Poseidon, 1970), e estes respondiam com algo (Lizard, 1970) mais próximo de Miles Davis (Sketches of Spain, 1959) e, portanto, de Joaquín Rodrigo; os Renaissance tinham mil e uma histórias para contar (Scheherazade and other stories, 1975); Rick Wakeman viajava até ao centro da Terra (Journey to the centre of the Earth, 1974); os Rush escreviam distopias (2112, 1976); os Soft Machine produziam grandezas inumanas (Third, 1970); e Vangelis separava o céu e o inferno com uma canção pop (Heaven and Hell, 1975). Ou seja, os Pink Floyd haviam feito o que se esperava de um grupo herdeiro da tendência iniciada pela música popular urbana nos anos 1950, a qual se achava agora provida de melhores meios e mais vasta ambição. A progressão das várias linguagens fazia-se por intermédio de experiências, e Atom heart mother era, como se viria a confirmar em Meddle (1971), apenas mais uma etapa. As vacas gordas, essas, ainda estavam para chegar.

Da esquerda para a direita: Nick Mason, David Gilmour, Roger Waters e Richard Wright (1971)

Um destes dias

Ainda que na sua génese estivesse um olhar para trás (o grupo não havia ficado satisfeito com as gravações de estúdio de Ummagumma, pelo que se preparava para repetir o esquema que lhes tinha dado origem), Meddle seria incontestavelmente um passo em frente, até no consolidar da posição de Roger Waters enquanto líder do grupo. Conseguia ser mais diversificado do que o seu antecessor, Atom heart mother, sem que para isso precisasse de abrir mão de um certo grau de coesão. Mais importante: não repetia os erros do passado: guardavam-se as fanfarras no bolso, fechava-se a porta ao mundo (às modas) e conseguia-se um som novo, um som que olhava em frente.
Os Pink Floyd entravam definitivamente na década de 1970. A violência da faixa de abertura, “One of these days”, com as suas letras sumárias mas providas de uma violência impar na carreira dos Pink Floyd (cantava Mason: «One of these days I'm going to cut you into little pieces»), era um bom indício das mudanças que então se operavam. Seguia-se a placidez de “A pillow of winds” (uma grande canção de amor), o rock de “Fearless”, o bambolear de “San Tropez” (onde, segundo consta, Gilmour terá seduzido Brigitte Bardot) e o blues de “Seamus” (Gilmour e o seu cão, Seamus, cantavam à porta de casa).
Mas era “Echoes”, a faixa que ocupava integralmente a segunda face do disco (ainda o vinil), que dava o toque de grande obra a Meddle. A sequência inicial fazia-se com uma meia-dúzia notas dadas no piano e, simultaneamente, afogadas em efeitos. Estas soavam como se de pingos de água se tratassem. Ouvia-se um pingo e depois outro e outro ainda; perfuravam a quietude das águas que se achavam por baixo. Seguia-se um lento improviso sobre esse som, à partida sem grandes perspectivas que não a de simples efeito. Sobrepunham-se o baixo, a bateria, a voz e, após um leve ameaço, um notável primeiro solo de Gilmour. Abrandava-se o swing; repetia-se o processo e Gilmour dava início ao seu notável segundo solo.
Meddle conheceria um enorme êxito, continuando dois anos depois, em 1973, muito bem classificado nos hit-parades britânicos. A evolução dos Floyd era agora mais lenta e serena, coerente e reflectida.

Pink Floyd, Live at Pompeii (1971)

Ainda o cinema

Verão de 1972. O quarteto fazia férias em San Tropez numa casa com persianas de um azul esmorecido, criadas atarefadas com a lida diária, lavando, cozinhando, servindo à mesa. Moviam-se por entre o cheiro de flores silvestres; a casa achava-se cercada delas e o perfume introduzia-se pelas janelas abertas. Richard Wright e Juliette Gale, sua esposa e uma das primeiras vocalistas dos Architectural Abdabs, brincavam com elas: apanhavam as pétalas caídas e deixavam-nas tombar por entre os dedos enquanto os outros se reuniam no alpendre, com as suas roupas claras, e tomavam bebidas geladas sob o fundo esmorecido das persianas. Mais tarde aglomeravam-se todos em torno de um piano e cantavam velhas canções inglesas.
Já de regresso a casa, o quarteto empreenderia uma digressão pelo Reino Unido. Dispunham de um novíssimo equipamento sonoro – a quadrifonia fazia a sua estreia – e sentiam-se mais maduros, mais aptos para tocar ao vivo e promover uma discografia que se achava agora encimada pelo álbum que lhes havia traçado novas coordenadas. Fariam setenta e duas datas e, numa delas, seriam pirateados (conferir The best of Tour 72). Este infortúnio aborrecê-los-ia imenso, uma vez que não tinham prevista a gravação imediata de alguns temas novos – Dark side of the moon (1973) parecia não estar com grande pressa para nascer. O grupo completaria ainda as gravações de uma nova encomenda de Barbet Schroeder, a banda sonora de La vallée (1972), cujo álbum correspondente, Obscured by clouds (1972), acabaria por ser posto à venda meses antes do previsto, justamente com o objectivo de dar ao mercado algo que o distraísse da gravação pirata que então já circulava.
Apesar da beleza das paisagens da Nova Guiné, o filme acabaria por desiludir o público de More. O argumento era interessante: a descoberta da vida, sob as suas formas dionisíacas, pela mulher de um embaixador (Bulle Ogier), e a exploração por uma comunidade (J.P. Kalfon, Michael Gothart e Valérie Lagrange) de um vale misterioso. Mas à concretização, ao objecto final, faltava a marca geracional de More. O álbum, porém, conseguia apartar-se da fraca qualidade do filme: Obscured by clouds era estranhamente coeso e continha algumas preciosidades: os ambientes asfixiantes de “Obscured by clouds” e “Absolutely curtains”, e o à-vontade de “Burning bridges”, “Wots uh the deal”, “Mudmen” e “Stay” – notar nesta última as raízes de Wet dream (1978), o álbum que marcaria a estreia a solo de Richard Wright. De resto os Floyd pareciam muito contentes com o resultado: «Ficámos bastante satisfeitos com a nossa música. Portanto, não vejo onde está o problema, se é que há algum problema. Voltando à música, ela era, no nosso espírito, uma sucessão de canções. Não era um álbum dos Pink Floyd, mas um conjunto de canções. O todo equilibrava-se muito bem por entre ritmos e ambientes diferentes», diria Nick Mason à revista Rock & Folk em 1973.
A experiência de La vallée era, pois, inversa à de Zabriskie point (1970). Michelangelo Antonioni havia utilizado apenas três dos vinte temas gravados pelo grupo, fomentando-lhes a fúria e alguns comentários indecorosos (envolviam a palavra “tirano”). O filme era, todavia, bem melhor do que a música: “Come in number 51, you time is up” era, por exemplo, um remake mal disfarçado de “Careful with that axe, Eugene”.
Frustrados, decidiriam eles próprios abraçar a sétima arte em Live at Pompeii (1971). Co-produzida por várias televisões europeias, esta longa-metragem de Adrian Maben era o resultado de uma ideia muito cara ao grupo que, desde Tonite let's all make love in London, sonhava ser imortalizado em filme num quadro completamente floydinao. E Maben saberia captar muito bem a execução dos músicos: as versões de “Careful with that axe Eugene”, “A saucerful of secrets”, “One of these days” e “Set the controls for the heart of the Sun” tornar-se-iam derradeiras, as absolutamente perfeitas.

Pink Floyd, Dark side of the moon (1973)

A Lua é triangular

Depois de um período experimental mais ou menos bem sucedido, o grupo encontraria em Dark side of the moon, a peça que faltava para preencher de vez o vazio deixado por Syd Barrett. Este salto e esta renovação seriam sobretudo obra de Roger Waters, o que revelava já a sua plena condição de líder. Contudo, o reconhecimento dos outros Floyd não podia ser negligenciado: Nick Mason brilhava na produção e na manipulação das fitas magnéticas (ainda a musique concrète; Waters também se aventurava nestes domínios), Richard Wright continuava a ser o harmonizador e David Gilmour dava continuidade à sua ascensão enquanto guitarrista.
O grupo permitia-se ainda a algumas audácias: o saxofone de Dick Parry em “Money” e “Us and them”; a voz de Clare Torry em “The great gig in the sky”; e o modulador VCS3 em “On the run” e “Any colour you like” (os Floyd haviam sido convidados, juntamente com os King Crimson e os Curved Air, a experimentar esta versão simplificada dos teclados Moog). Estes pequenos atrevimentos apartavam-se claramente da condição de artifícios harmónicos destinados a camuflar uma certa vacuidade (olá Atom heart mother). Eram antes finuras que dotavam a música, que nem por isso se havia distanciado da estética de Meddle, de novos elementos timbricos que ajudavam a solidificar a estesia floydiana. Assim, o grupo partia em direcção a uma condensação das fórmulas usadas no seu passado recente, sendo que estas eram agora mais imediatas e próximas do espírito do rock corrente. Contavam para isso com dois artífices de grande gabarito: o engenheiro Alan Parsons: criaria o Alan Parsons Project que, de quando em quando, faria lembrar os Floyd; e o produtor Chris Thomas: trabalhara em álbuns como The Beatles (The Beatles, 1968), Grand Hotel (Procol Harum, 1973) ou For your pleasure (Roxy Music, 1973).
Dark side of the moon trazia ainda no regaço uma enorme novidade: era o primeiro álbum do grupo a alicerçar-se num conceito assim explicado por David Gilmour: «O tema de Dark side of the moon relaciona-se com todas as pressões da vida moderna que nos podem levar à loucura. Estas pressões, o dinheiro, as viagens ou a planificação, sentimo-las nós, músicos, muito mais do que o homem da rua. Quando tudo se desequilibra, chegamos à situação patológica do louco.» Os temas, apesar de não estarem aparentemente interligados, encadeavam-se, íntima e inexoravelmente, na exploração do modus vivendi de um normal habitante do mundo ocidental ou ocidentalizado.
O álbum principiava com uma montagem assinada por Mason, na qual eram enumerados alguns dos vícios (ruídos nocivos) da vida moderna, servindo também de introdução a “Breath”, tema que actuava como um anti-clímax das perversidades descritas na faixa anterior. O clima etéreo de “Breath” era composto por pequenas pinceladas de guitarra que aí assumiam uma força evocadora impressionante, desembocando no experimental “On the run” e tornando a aparecer em “Time”, este sobre a fuga e a obsessão do tempo que se elevava num dilúvio de mecanismos de relógios e pêndulos.
Seguia-se “The great gig in the sky”. Clare Torry havia sido chamada aos estúdios Abbey Road. As folhas das árvores, arrancadas pelas fortes chuvadas, tingiam as bermas da estrada de um amarelo-dourado, conferindo-lhes o aspecto de um leito seco de um rio. Era domingo, pelo que o seu namorado se havia oferecido para a acompanhar. Cá fora não se ouvia nenhum som além do ruído que os passos dos transeuntes produziam ao pisar as folhas caídas. Dentro do estúdio, porém, Torry cantava «Yeah, yeah, baby, baby». Disseram-lhe depois que não queriam quaisquer palavras. Wright estava aflito. Torry preparava-se já para regressar a casa quando se lembrou de que talvez não tivesse percebido a intenção da peça. Retirou o casaco e projectou a voz como se de um outro instrumento se tratasse. Cantava agora: «Whoah-oh-aaaa-woo-a-woaah…» – que nos perdoem novamente os nossos amigos puristas. Já de regresso ao carro, terá dito ao namorado que a sessão não tinha corrido bem. Passou uma factura de trinta libras (havia acrescido quinze libras ao preço normal que cobrava durante os dias de semana) e, passados alguns meses, comprou o disco apenas para descobrir que o seu primeiro take havia sido utilizado. Fez as contas e, em 2005, decidiu cobrar mais algum pilim. Pelo meio participou em álbuns dos Tangerine Dream e dos Culture Club. Os Floyd entravam no mercado; “Money” expressava-o. Esta alusão ao vil metal seria um dos temas emblemáticos do grupo e revelava Waters enquanto mestre na experimentação com as fitas magnéticas, as quais, para introduzirem o ritmo na canção, tinham sido cortadas à mão e depois milimetricamente coladas. “Money” era o grande momento, aquele que de facto evidenciava uns Pink Floyd mais maduros. Mas Dark side of the moon tinha ainda outros momentos que o colocavam, se não no clima geral pelo menos na execução, um passo adiante de Meddle: “Us and them” revelava inovações melódicas particularmente evidentes nos coros à Moody Blues e no solo de saxofone de Dick Parry – o Alan Parsons Project dar-lhe-ia seguimento com “Time” (The turn of a friendly card, 1980); o instrumental “Any colour you like” aproximava-se de A rainbow in curved air (1969) de Terry Riley, nascendo de um fundo de VCS3 que depois era salpicado por violentas improvisações, nomeadamente por dois solos cruzados de David Gilmour; e a extraordinária reconstituição da alienação que era “Brain damage”, uma evocação musical atormentada, pontuada por gargalhadas e refrões majestosos, fundava-se nos prodigiosos coros femininos (Liza Strike, Doris Troy e Leslie Duncan) que depois faziam a ponte para o final da obra, final esse onde toda a ‘normalidade’ por debaixo do Sol era – ou podia ser – eclipsada pela Lua.

Da esquerda para a direita (ou tudo ao contrário): Richard Wright, Roger Waters, Nick Mason e David Gilmour (1973)

Embora fosse um céptico em relação a Dark side of the moon, Fernando Magalhães não deixava de salientar alguns dos seus progressos: «Uma das facetas mais curiosas dos Pink Floyd, relativamente ao Dark side of the moon, é o modo como a utilização do sequenciador, na faixa “On the run”, serviu de base às sequências rítmicas criadas pelos Tangerine Dream, em Phaedra e Rubycon. Aliás, os Tangerine Dream como que construíram um mundo inteiro e autónomo a partir de um excerto da música dos Floyd, precisamente o seu lado mais cósmico e electrónico. Porém, esta componente rítmica dos sequenciadores de “On the run” já tinha antecedentes dentro da obra dos Floyd, nos álbuns Atom heart mother (na suite com o mesmo nome) e em Meddle (na longa faixa “Echoes”). De resto os Floyd influenciaram uma série de grupos alemães; estou a lembrar-me dos Gila, dos Jane, dos Os Mundi, dos Sand (no magnífico Golem).» Com efeito, os Pink Floyd de Dark side of the moon haviam deixado a sua marca no chamado “Período Virgin” (de 1974 a 1983) do grupo alemão. Não só em Phaedra (1974) e Rubycon (1975), mas também em Ricochet (1975) e, de uma forma mais comedida, em todos os álbuns seguintes até Force majeure (1979). Mas voltemos, por ora, ao cepticismo. Luís Miguel Loureiro, jornalista da RTP e co-organizador do Gouveia Art Rock, é peremptório: «O Dark side of the moon nunca me entusiasmou como o fizeram outros trabalhos anteriores dos Floyd (conhecidos posteriormente na minha escala temporal... o meu primeiro contacto com os Pink Floyd foi, obviamente, o ainda menos entusiasmante The wall que nunca cheguei a comprar!... nem em vinil). É claro que quando falo em entusiasmo, ele tem mais a ver com todo o fascínio que sempre encontrei noutros projectos oriundos da década de setenta, que nunca senti nos Pink Floyd. São perspectivas pessoais, portanto, mais do foro emotivo. Mas, passados estes anos, e tentando reouvir mentalmente o Dark side of the moon, também não encontro nele motivos musicais que me façam crescer um súbito entusiasmo racional. Ou seja, parece-me que o grosso da importância da obra dos Pink Floyd se situa antes desse álbum e que o durante e depois pouco ou nada vieram acrescentar.» Eduardo Mota concorda (à Jardel): «Decepção. Terá sido esta a palavra, creio, que mais ocorreu a um jovem melómano no primeiro contacto que teve com Dark side of the moon, no já longínquo ano da graça de 1973. Chegado de véspera ao admirável universo sonoro daquilo que hoje se designa por rock progressivo, num momento em que procurava confirmar, consolidar os seus valores musicais, o novo disco dos Pink Floyd, para além de desiludir, veio baralhar, confundir um pouco a selecção em curso. Para um lado ficavam Beatles, Rolling Stones, Deep Purple, Grand Funk, Black Sabbath e quejandos – os rejeitados. Para o outro, os fascinantes Gentle Giant, Van der Graaf Generator, Genesis, Yes, Tangerine Dream, Renaissance, Soft Machine, Caravan… e os Pink Floyd. Exactamente: os Pink Floyd. Os mesmos que pouco antes surpreendiam com álbuns arrojados como Atom heart mother, Meddle ou Ummagumma. Os mesmos que meia dúzia de anos antes, em pleno Psicadelismo, ousavam assinar “Astronomy domine”, uma peça pioneira, premonitória do próprio Progressivo. Os Pink Floyd de Dark side of the moon não ousavam nada, apenas alindavam; não aprofundavam, preferiam simplificar; não surpreendiam, preocupavam-se em agradar; não experimentavam, optavam por investir com um risco mínimo, com retorno mais que garantido. Os Pink Floyd de Dark side of the moon afinal não eram os mesmos; eram outros. Por isso, decepcionaram o jovem melómano. E confundiram-no na sua selecção de valores. Atraiçoaram-no até na confiança, na fé que ele tinha na produção musical do grupo. Por isso, o jovem melómano não comprou o álbum. Nem desejou que alguém lho oferecesse numa ocasião festiva. Irritou-se até sempre que o ouvia passar na telefonia, na discoteca, no intervalo de uma sessão cinematográfica, ou a ser tocado num baile provinciano pelo ‘jaz’ de serviço.» Por outro lado, Álvaro Silveira, vocalista do grupo de rock progressivo Miosótis, é da opinião que «Dark side of the moon é provavelmente o disco mais importante de toda a obra dos Pink Floyd por inúmeras razões: é a síntese na modernidade dos vários caminhos experimentados na primeira metade da sua discografia; o abrir para a nova sonoridade que se desenvolverá a partir daí, a catarse definitiva da herança deixada por Syd Barrett e a passagem de testemunho a Roger Waters.» Silveira abre o seu baú de memórias: «Quem iniciava a sua adolescência na segunda metade dos anos ’70, tinha duas alternativas: ou alinhava com o processo revolucionário em curso que chegava de Londres e pendurava uns alfinetes pela roupa e pela face, gritando “No future!”, ou assumia a nostalgia de um passado imediato, que a Portugal chegava com um ligeiro atraso, e embarcava no mundo do Progressivo. Este [Dark side of the moon] era o disco que tinha de longe mais audições, individuais ou colectivas, só para ouvir ou também para dançar, só para confirmar um detalhe ou como evento conceptual, com ou sem apoio de substâncias mais ou menos proibidas, com namoradas ou sem elas, em casa ou no pátio do liceu. Qual The lamb lies down on Broadway [Genesis, 1974], qual Close to the edge [Yes, 1972], qual Houses of the holy [Led Zeppelin, 1973]: o Dark side of the moon era o nosso denominador comum!»

Pink Floyd, Wish you were here (1975)

Um mergulho em águas cartografadas

Steve O’Rourke, empresário do grupo desde 1971, continuava a edificar o império Pink Floyd. Abria-se a gaveta da caixa registadora. O grupo via-se metido num esquema perigoso: a Gini pagava-lhes a soma de cinquenta mil libras pelos direitos de utilização de algumas canções – música ketchup, portanto. A gravação de Wish you were here (1975) era errática: Waters punha várias vezes o projecto em causa, Gilmour entretinha-se a tocar com os Sutherland Brothers e Mason produzia Rock bottom.
Wish you were here acordava Syd Barrett da sua latência. “Shine on you crazy diamond” e “Wish you were here” eram-lhe dedicadas numa altura em que o grupo necessitava de referências para não sucumbir às pressões da industria, pressões essas muito bem descritas em “Welcome to the machine” e “Have a cigar”. Barrett aparecia no estúdio. Roger Waters (Uncut, Maio de 2007): «Costumava aparecer nos nossos concertos, à espera de poder tocar, penso eu. Não tenho a certeza do que queria ele nesse dia. Foi uma coincidência bizarra porque estávamos a trabalhar na “Shine on you crazy diamond”, precisamente na altura em que ele apareceu. Eu não o reconheci. Pensei que aquele tipo gordo e careca, que comia doces em pleno estúdio, se tratava de um amigo de alguém. Penso que terá sido o David quem disse: “Ainda não perceberam, pois não?”»

Pink Floyd, Animals (1977)

No tempo em que os porcos voavam

Fim de Janeiro de 1977. Os Pink Floyd lançavam o seu décimo álbum, Animals. Em palco, a componente cénica do grupo continuava a progredir: Roger Waters usava um osciloscópio que lhe permitia verificar, a cada instante, se continuava afinado e uns auscultadores que lhe devolviam o balanço geral misturado por Brian Humphries; Nick Mason dispunha de uma plêiade de microfones que só entravam em funcionamento quando o objecto que captavam era percutido. Resultado: um som geral com uma clareza admirável.
Para os seus concertos de 1977, os Pink Floyd usariam momentaneamente o espelho reflector anteriormente utilizado pelos Rolling Stones. Far-se-iam ainda acompanhar de um segundo guitarrista, Snowy White, e voltavam a chamar Dick Parry (saxofone e, desta vez, teclas). Gilmour e Waters não comunicavam com o público: apenas um curto e seco «Good night». O vazio era, no entanto, plenamente preenchido por geringonças imponentes: um enorme porco voador, gruas luminosas e um desenho animado de Gerald Scarfe (seria o responsável máximo pelas artes de The wall). Os músicos mantinham, ainda assim, um ar despretensioso: os gigantes da indústria pop não cometiam as mesmas extravagâncias de Elton John, Freddie Mercury (Queen), Mick Jagger (The Rolling Stones) ou Rod Stewart.
Animals, mais do que qualquer outro álbum lançado pelo grupo até essa altura, não só espelhava essa modéstia como fazia com que os Pink Floyd descessem à arena. Com os olhos postos no poema Meat, de Brian Patten («Nós somos o que comemos, e comemos o que somos…»), Animals tornava ainda mais obsoletas as palavras de ordem do Punk, enquanto esboçava uma divisão social em três níveis: os Cães (“Dogs”), seres calculistas e agressivos que procuram, sem olhar a meios, o poder e o dinheiro, investindo a sua energia no pragmatismo e atribuindo-se a si mesmos a mais terrível das sanções: a insatisfação permanente; os Porcos (“Pigs - Three different ones”), existências apenas merecedoras de piedade que se reprimem a si e aos outros; e os Carneiros (“Sheep”), que são enganados, iludidos e mistificados, mas que aceitam a sua situação com resignação.

Pink Floyd, The wall, 1979

A marcha dos martelos

Por cima da entrada para o estádio, um enorme letreiro avisava: «NO CAMERA! NO TAPE RECORDER!» A entrada fazia-se de forma ordeira. O recinto estava mergulhado numa obscuridade quase total. Apenas um projector se encontrava aceso, no centro do palco. Gilmour, que se encontrava nos bastidores, volveu um novo olhar para a guitarra que lhe fora entregue minutos antes. Uma loura bem arranjada preparava-se também para ocupar a cena. Era ainda cedo, mas, disse ela, conseguiria desta forma sentir melhor o seu papel. Gilmour respondeu que podia sentar-se, se assim o entendesse. A loura afundou-se imediatamente, como uma massa mole. Gilmour tentava ignorá-la. Concentrou-se em algumas passagens mais difíceis, percorrendo com os dedos as cordas de uma guitarra ainda silenciosa.
Lá fora, a parede estava meia construída e descia em escada, de ambos os lados do palco, deixando entre si uma abertura de cerca de vinte metros por trinta de fundo, onde se achavam alguns instrumentos. Em frente ao palco e a uns cento e cinquenta metros, um Spitfire pairava ameaçador. Soavam rugidos de motores e crepitares de metralhadoras. Do tecto pendiam estandartes negros, vermelhos e brancos com dois martelos cruzados ao centro. Um boneco desarticulado repousava.
O mestre de cerimónia fazia a sua aparição: «Peço-vos para não atirarem petardos porque esta noite haverá explosões suficientes nas vossas cabeças. Lembro-vos que é proibido tirar fotos…» O resto da frase perder-se-ia sob um ribombar do órgão, enquanto o Spitfire mergulhava sobre o palco produzindo um ruído devastador, acabando por se despedaçar numa magnífica explosão. O grupo duplo abria o espectáculo: Andy Brown (músico extra dos Status Quo durante as digressões) no baixo, Willie Wilson na bateria, Snowy White na guitarra e Peter Wood nas teclas.
O público ficava siderado com a qualidade do som quadrifónico. Os efeitos sonoros, o rugir dos aviões, o cantar dos pássaros, as vozes e os solos de Gilmour encontravam-se perfeitamente ligados, soldados; as vibrações, os suspiros, os risos e as gargalhadas formavam um rendilhado que enchia a atmosfera. Os olhares desviavam-se agora na direcção de uma espécie de aranha-gafanhoto que se erguia a uns bons dez metros de altura.
Os roadies continuavam a colocar tijolo sobre tijolo. Os Pink Floyd quase se perdiam algures por trás de uma imensa parede onde figurava, então, a primeira animação de Gerald Scarfe: um caule mole e ondulante que fazia desabrochar uma corola doce, graciosa, atraente. Juntava-se-lhe outro. Após um beijo, a corola abria-se e, lentamente, o estame transformava-se em brecha, promessa de prazeres, sedutora, que se deixava penetrar antes de engolir o próprio corpo que a penetrava.
Os projectores estavam centrados em Gilmour. Wright era o primeiro a desaparecer por trás da parede onde agora se projectava a imagem de um louva-a-deus de cara rude, cabelos grisalhos severamente puxados para trás, olhos azuis de expressão dura e sobrancelhas deslavadas mas que se franziam de forma ameaçadora. Brilhavam ainda as imagens do terrível bailado da paixão devoradora; a corola engolia o seu sexo e o estame que a penetrava, transformando-se depois num pterodáctilo que pairava, ameaçador, sobre uma cidade.

Pink Floyd, The wall

«I need a dirty woman!», gritava Waters. Um telefonema sem resposta e a voz de uma mulher que propunha: «Queres um copo de água?» Ei-la, a mulher loura que antes ocupava a antecena: esguia, graciosa. Lançava um olhar curioso em redor do quarto, às guitarras, à casa de banho. As cortinas dissimulavam as portas dos armários, faziam sobressair o matiz mais claro das paredes e davam uma impressão de regularidade geométrica. O chão encontrava-se pejado de pequenos objectos organizados como se de uma pequena cidade se tratasse. Waters permanecia absorto: pensava por que razão a esposa não lhe atendia o telefone. Cruzava-se com o miúdo que antes fora, com os sarcasmos negros dos professores, com a protecção invasiva e castradora da mãe. Levanta-se depois, e gritava à loura: «Queres ver televisão? Ou experimentar os lençóis? Ou contemplar a auto-estrada? Queres comer qualquer coisa? Queres aprender a voar? Queres ver-me a tentar? Queres chamar a bófia? Achas que já é tempo de eu parar? Por que foges?»

Pink Floyd, The wall

Os espaços vazios haviam sido totalmente ocupados. A imponência da parede esmagava o grupo duplo que agora aparecia com as caras pintadas de branco. «Está alguém aí fora?», repetia uma voz vinda do interior. E novamente a parede se enchia de imagens, desta vez a preto e branco, de uma outra época. Era a guerra. Novamente os Spitfire, as fotos de família, os soldados que partiam, as mulheres de mãos estendidas e as faces que, pareciam sabê-lo, não voltariam a ver. Vera Lynn cantava: «We'll meet again, don't know where, don't know when / But I'm sure we'll meet again some sunny day». Estranhas e aterradoras personagens animadas passeavam-se pelo imenso ecrã: um professor a passar os seus alunos por uma máquina de picar carne; a mãe devoradora, monstruosa, portadora dos primeiros castigos; a esposa de olhos exorbitados, dentes acerados e pernas macilentas provenientes de um sexo deformado; um juiz anafado; e a aterradora marcha dos martelos cada vez mais numerosos.
Os dois grupos juntavam-se em cima do palco. Waters envergava um blusão negro; no braço uma braçadeira com os dois martelos cruzados. Estava prestes a ser julgado pelo seu crime: possuía sentimentos. A parede, enquanto símbolo de reclusão proteccionista e opressiva, seria destruída por ordem do tribunal. Era o fim da descrição minuciosa, quase sádica, maníaca e sem tréguas dos alegados mecanismos de destruição de uma personalidade, que depois se tornava ela própria destruidora de outras personalidades – o homem alienado pelo homem que se transformava em alienante.

Pink Floyd, The wall

A obra era impressionante e o espectáculo também. Contudo, os Pink Floyd há muito haviam cessado de existir enquanto bloco criativo. The wall mostrava um Waters em plena superintendência. Dizia Bob Geldof (Boomtown Rats; organizador do Live Aid (1985); representaria a personagem principal em The wall, o filme de Alan Parker inspirado na narrativa de Waters) à revista Rock & Folk, em 1982: «A personalidade em questão, no filme, é a de Waters. Tudo é autobiográfico, os pormenores mais íntimos são rigorosamente autênticos, pensamentos, paranóias, destruições, sonhos, pesadelos, etc. Por outras palavras, o nível de loucura a que chegou. A sua lucidez, a sua condição. E finalmente o ódio que tem a si próprio – como ao resto das coisas.»

Pink Floyd, The final cut (1983)

O sonho do pós-guerra

The final cut (1983) tinha como ponto de partida o pós-guerra das Maldivas. Este acontecimento, mais do que qualquer outro anterior, parecia ter exercido um efeito de catarse sobre a psicologia de Roger Waters. As recordações e os traumas ligados à Segunda Guerra Mundial e à morte do seu pai, misturavam-se com as imagens da partida dos soldados, do desespero das famílias e das cerimónias fúnebres para os desaparecidos – uma mistura do então quase presente com o passado longínquo, a dialéctica entre o destino pessoal e as vicissitudes sociais e políticas, que, por se alhear um pouco do simples carácter pessoal presente em The wall, fazia de The final cut um registo bastante mais forte do que o seu antecessor.
Waters libertava toda a impetuosidade do seu ódio por qualquer espécie de socialização organizada, pela política ou pela própria violência (uma das suas muitas contradições). Os Pink Floyd, todavia, desmaterializavam-se: Richard Wright havia sido despedido e Nick Mason não ficaria até ao final das gravações. O resultado, embora apurado, ressentia-se e o título ganhava outras conotações: ‘a montagem final’ de The wall transformava-se também na ‘peça final’ dos Pink Floyd. Sentia-se nele a morte: o último corte, o golpe da espada; morte de um grupo, morte no campo de batalha, morte de um pai, fantasma da morte de um filho, do próprio autor… O aspecto mais paradoxal de The final cut estava no facto de, por entre todo esse pessimismo mórbido, trespassarem ainda assim momentos de esperança, de ternura até (“The gunner’s dream” e “The final cut”).

Pink Floyd, A momentary lapse of reason (1987)

E depois do adeus

Em 1987, Roger Waters estava a viver a sua era pós-Floyd. Com quarenta e três anos, algumas madeixas grisalhas a aparecer, parecia equilibrado e franco: «Desde que deixei de operar sob a ociosidade dourada dos Pink Floyd, preciso de toda a ajuda que consiga obter» (Creem, Novembro de 1987). Tendo abandonado os Pink Floyd dois anos antes, Waters preparava-se para desencadear uma vasta ofensiva judicial contra os outros Floyd. A razão era simples: os ‘Pink Floyd’ (Wright dava apenas uma perninha) tinham acabado de editar A momentary lapse of reason (1987) e Waters achava que o nome do grupo, «por ter um grande significado para muita gente, não deveria ser usado como chamariz para atrair pessoas». Perderia a acção que, retrospectivamente, apenas serviria para cavar um fosso entre as partes. Seriam precisos quase vinte anos e um mega-evento, o Live8 (2006), para que os Pink Floyd voltassem a tocar juntos. Entretanto a discografia do grupo crescia: A momentary lapse of reason, The division bell (1994) e os álbuns das respectivas digressões, Delicate sound of thunder (1988) e Pulse (1995), vendiam como pãezinhos quentes embora fossem apenas álbuns de música – raramente boa, quase sempre desinteressante.

Da esquerda para a direita: David Gilmour, Roger Waters, Nick Mason e Richard Wright (2006)

Em 2007, quando questionado sobre uma possível reunião pela revista Uncut, Waters respondia o seguinte: «Há vinte anos que os Pink Floyd são o bebé do Dave e ele não abre mão disso. Se conseguíssemos pôr para trás das costas os nossos egos e a nossas histórias, poderíamos fazer umas datas em Londres, Nova Iorque, algumas em Los Angeles, Palestina, etc. O esforço não valeria a pena por causa de um só concerto. Mas se o objectivo fosse o de tocar algumas datas, estaria disposto a dedicar seis meses do meu tempo. Tenho a certeza de que o Nick também estaria disposto a isso, mas não o Dave. É a sua prerrogativa e não posso censurá-lo por isso. Nos anos ’70, quando ainda estava no grupo e dávamos imensos concertos em estádios, era eu quem tratava disso tudo. Escrevia a maior parte das canções e preparava todos os espectáculos. Acho muito difícil isso voltar a acontecer…»

Pink Floyd, Oh by the way (2007)
Escrito em 2008 para o Bodyspace, a propósito da edição da compilação Oh by the way (EMI, 2007).

Música em imagens VI

Sexta parte de uma lista pictórica que reúne as minhas capas de discos favoritas. Algumas encerram discos soberbos; outras nem por isso.

José Afonso, Cantigas do Maio (1971) José Afonso, Venham mais cinco (1973)José Afonso, Com as minhas tamanquinhas (1976)José Afonso, Enquanto há força (1978)
José Afonso, Fura fura (1979)Joy Division, Unknown pleasures (1979)Joy Division, Closer (1980)Joy Division, Substance (1977-1980) (1988)
July, July (1969)Junior Boys, So this is goodbye (2006)Kate Bush, The kick inside (1978)
King Crimson, In the court of the crimson king (1969)King Crimson, In the wake of Poseidon (1970)
King Crimson, Lizard (1970)King Crimson, Larks' tongues in aspic (1973)King Crimson, Beat (1982)

domingo, 26 de abril de 2009

Quando voltares, traz-me um rio que não seja indiferente.

domingo, 19 de abril de 2009

No, I have never found
The place where I could say
This is my proper ground,
Here I shall stay;
Nor met that special one
Who has an interesting claim
On everything I own
Down to my name;

To find such seems to prove
You want no choice in where
To build, or whom to love;
You ask them to bear
You off irrevocably,
So that it’s not your fault
Should the town turn dreary,
The girl a dolt.

Yet, having missed them, you’re
Bound, none the less, to act
As if what you settled for
Mashed you, in fact;
And wiser to keep away
From thinking you still might trace
Uncalled-for to this day
Your person, your place.

Philip Larkin, Places, loved ones

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Adoro quando os tradutores aproveitam o seu objecto de trabalho* para 'malhar' uns nos outros: «[…] A tradução francesa de Moby Dick, de Lucien Jacques, Joan Smith e Jean Giono foge em regra às dificuldades de hermenêutica e, de uma forma geral, é bastante má, não tendo em nada contribuído para esclarecer as dúvidas dos tradutores portugueses.»

* Herman Melville, Moby Dick (Relógio d’Água, 2005)
 Cormac McCarthy, Suttree (Relógio D’Água); Edgar Allan Poe, A narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket (Assírio & Alvim); John Cheever, Contos completos I (Sextante).
Livros: Escolhas trimestrais 1/2009:
- Cormac McCarthy, Suttree (Relógio D’Água);
- Edgar Allan Poe, A narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket (Assírio & Alvim);
- John Cheever, Contos completos I (Sextante).

(Atente-se ainda na 'reedição' de Falconer, de John Cheever.)

quarta-feira, 1 de abril de 2009