segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A propósito da vinda a Portugal de Steve Reich, deixo aqui um texto que escrevi aquando do concerto que deu no Porto em Novembro de 2006.

Steve Reich

O meu nome é Daniel Pearl

Desde há muito que combinação religião/política/mártires/música acompanha o Homem e a ele se liga intimamente ao ponto de se tornar parte da sua história. Os primeiros cristãos acreditavam no poder mágico do canto, e embora muitos autores neguem que os cristãos primitivos cantassem, a descoberta no Monte Athos, de antigos manuscritos gregos, revelando uma fórmula musical de bênção com água e azeite para curar febre e afugentar os maus espíritos, veio revelar uma possível origem da música sacra cristã.
Mais tarde, já no século IV, surgiram, segundo se julga, as primeiras músicas ocidentais, que nesta altura ainda não passavam de orações cantadas, fortemente influenciadas pela música hebraica. No oriente, não perseguidos, os cristãos cantavam livremente. Plínio escreveu a Trajano contando que, em Bitinia, os cristãos reuniam-se para «entoar cânticos».
Com a difusão do cristianismo na Grécia e a adopção do grego como primeiro idioma eclesiástico, a música cristã recebeu uma enorme influência grega, e a tradição de cantar os seus mártires tornou-se mais forte. E não faltavam mártires numa religião tão perseguida como a cristã. Um dos mais importantes para a música foi Santa Cecília, ela própria uma organista e cantora que pedia protecção a todos os que a ouviam. Acabou por padecer no ano 230 d.C., tendo sido canonizada e tornada padroeira de todos os músicos, factos que vieram a inspirar compositores como Purcell e Handel na escrita dos seus oratórios.
Desde essa altura, a ligação entre música e mártires conheceu muitos outros exemplos. Agora como antes, religião e política combinam-se de forma a serem compreendidas como um todo indivisível, pelo menos no que aos destinos da humanidade diz respeito, daí que a música adopte cada vez mais o papel de manifesto em detrimento da espiritualidade a que estava votada em séculos mais distantes. E, nesse sentido, 2006 é um ano especial. O compositor Arvo Pärt anunciou que irá dedicar todas as suas apresentações da temporada de concertos de 2006/7 à memória da jornalista russa Anna Politkovskaya, recentemente assassinada em Moscovo. Pärt pediu aos músicos para que, antes do início dos concertos, dessem a saber ao público que estes são dedicados à memória da jornalista. Afirmou o compositor: «Anna Politkovskaya deu todo o seu talento e energia para que as pessoas pudessem saber e ter consciência dos aterradores crimes cometidos na Rússia.» E também o fez, ainda que noutra parte do mundo, Daniel Pearl, jornalista do Wall Street Journal que, em 2002, aquando do seu sequestro no Paquistão, gerou uma intensa mobilização internacional que apenas cessou quando a notícia de que havia morrido às mãos de um grupo terrorista chegou ao mundo ocidental. Surgiu depois a arte enquanto forma de protesto e espelho dos tempos que rodeiam a sua criação. Daniel variations nasceu, por fim, este ano, fruto de uma encomenda conjunta do Barbican Centre, em Londres; do Carnegie Hall, em Nova Iorque; da Cité de la musique, em Paris; e da Casa da Música, no Porto, sendo ainda comparticipada por um benemérito anónimo, em memória de Daniel Pearl, e pelo Meet the composer em associação com a Fundação Daniel Pearl, que se dedica à música e ao conhecimento entre diferentes culturas.

Steve Reich, Daniel Variations

Espero que Gabriel goste da minha música
Um mês após a sua estreia no Barbican Centre, em Londres, Portugal pôde finalmente assistir à execução de Daniel variations na Casa da Música. Claro que, ao dizer-mos Portugal, estamos a usar uma hipérbole tão evidente quanto abundante era o número de lugares vazios que, no passado dia 12, se achavam na sala Suggia.


A peça encontra-se dividida em quatro andamentos. O primeiro andamento cita Nabucodonosor, rei da Babilónia, a partir do livro de Daniel: «I saw a dream. Images upon my bed and visions in my head frightened me.» Daniel vem, no terceiro andamento, responder à pergunta de Nabucodonosor sobre a razão do seu pesadelo, dizendo-lhe: «Let the dream fall back on the dreaded.» A entremear surge o texto proferido por Pearl enquanto era filmado pelos seus captores: «My name is Daniel Pearl. I’m a jewish american from Encino, California.» Reich apenas utiliza a primeira parte da frase, uma vez que, segundo a tradição judaica, os nomes são indicativos do carácter do portador, assumindo assim esta frase um poder que, passados três anos sobre a sua morte, assume um carácter quase sobrenatural, uma espécie de passagem secreta na qual o tempo se deforma e traz para o presente a memória viva e vivida do jornalista.
O último texto surge, então, como uma surpresa e é-nos explicado por um amigo de Pearl da seguinte forma: «Uma vez, durante uma viagem de dois dias de bicicleta a Potomac River, o seu amigo Tom Jennings perguntou-lhe se ele acreditava na vida depois da morte. Pearl respondeu-lhe ‘Não sei’. E depois acrescentou: ‘Não tenho respostas, apenas perguntas’ e ‘Mas espero sinceramente que Gabriel goste da minha música.’» Depois da sua morte, enquanto Tom revia a colecção de discos de vinil do seu amigo, descobriu o disco Stuff Smith and the Onyx Club Orchestra, o qual inclui a faixa “I hope Gabriel likes my music”. Embora não faça qualquer citação da faixa em questão, Reich aproveitou-lhe o nome, ao qual acrescentou o dizer «when the day is done», enquanto expressão do fim (obra e vida).
A utilização de fonemas de uma língua enquanto sujeito principal de uma obra, remeter-nos-ia imediatamente para Tehillim, ou até mesmo para os primeiros trabalhos do compositor para fita magnética. No entanto, Daniel variations insere-se claramente numa outra marca: o uso dos instrumentos e vozes faz-se de uma forma mais complexa, não só ao nível dos resultados finais, como também ao nível da construção musical. Devido à grande apetência de Daniel Pearl por jazz e blue grass, e por ter sido, além de jornalista, violinista amador, Reich optou por colocar as cordas no centro da peça. São elas que lideram o discurso, sendo por vezes dobradas por dois clarinetes, enquanto a percussão conserva o rumo rítmico da peça e as vozes do Synergy Vocals (não fosse pela média de idades e diríamos que são uns quase veteranos na execução da obra de Reich) mantêm a acção em suspenso.


Música por números

Não deixa de ser curioso percebermos como, em trinta anos, tanta coisa mudou para Reich. Enquanto em Portugal se preparava uma revolução política, nos Estados Unidos o minimalismo repetitivo saía da gaveta. Michael Tilson Thomas apresentava, no Carnegie Hall, a peça de Steve Reich Four organs. A agitação era em tudo comparável à observada na estreia, em Paris, de A sagração da primavera, de Igor Stravinsky, com a adição humorística de uma senhora se ter juntado ao acto criativo, ao percutir o palco com o seu sapato de forma a acentuar a componente rítmica da peça. Porém, e porque os edifícios são meros espectadores da vontade dos homens, passados estes trinta anos, o mesmo Carnegie Hall que havia observado reacções tão afrontosas ao compositor, recebia-o agora de braços abertos para uma série de espectáculos envolvendo uma série de danças assinadas pelo compositor e coreografadas por Anne Teresa de Keersmaeker e Akram Khan, e execuções das peças It’s gonna rain, Proverb, You are (Variations), Tehillim, The cave e Daniel variations.
A mudança começou a verificar-se em 1976 com a apresentação pública de Music for 18 musicians. Esta foi, com efeito, a peça que, meritoriamente, marcou o separar das águas no que à aceitação da música de Steve Reich diz respeito. E no passado dia 12 foi ainda mais fácil perceber porquê. O primeiro movimento, “Pulse I”, logo faz desabar sobre os nossos ouvidos um espantoso movimento harmónico composto por dois tipos de camadas que se entrecruzam: uma pulsação regular nos pianos e restantes percussões que se mantêm ao longo da peça – ainda que os músicos se revezem, o que é bastante agradável de se ver ao vivo; e o ritmo da respiração humana transposto para as vozes e instrumentos de sopro que quase nos cria a necessidade de inspirarmos e expirarmos ao ritmo a que a peça está a ser executada.
Apesar de à sua pulsação estável e energia rítmica se relacionarem muitas das obras anteriores, a sua instrumentação (violino, violoncelo, clarinetes dobrando o clarinete baixo, 4 vozes femininas, 4 pianos, 3 marimbas, 2 xilofones e metalofone), estrutura e harmonia são novas. Segundo Reich «há mais movimento harmónico nos primeiros cinco minutos de Music for 18 musicians do que em qualquer outra obra minha na sua totalidade». Apesar do movimento entre acordes ser apenas um ajuste da ordem das vozes, uma inversão ou uma mudança entre relativo maior ou menor em relação ao acorde anterior, estes movimentos harmónicos têm um papel da maior importância nesta obra.
As secções de abertura e encerramento da peça, bem como algumas partes em todas as secções, contêm a pulsação das vozes e dos sopros. Eles fazem uma longa e profunda respiração e sustentam algumas notas durante o maior tempo possível, dentro, como é claro, dos limites do razoável.
As mudanças entre secções, bem como dentro de cada secção, são alinhadas pelo metalofone, cujos padrões são tocados apenas uma vez para anunciar o compasso seguinte, num processo semelhante ao utilizado no gamelão de Bali, ou em alguma da música da África ocidental (Reich estudou percussão no Gana durante um ano, aplicando depois as técnicas que aprendeu na sua primeira grande peça, Drumming, cuja célula inicial, que se repete ao longo de toda a obra, é aqui revisitada).