terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo – de um ponto de vista puramente teórico – uma terrível desordem das almas: é um comércio com fantasmas, não apenas com o fantasma do destinatário, mas também com o próprio; o fantasma cresce por debaixo da mão que escreve, na carta que ela redige, com maior razão numa série de cartas onde uma corrobora a outra e pode chamá-la a testemunhar. Como pôde nascer a ideia de que as cartas dariam aos homens um meio de comunicar? Podemos pensar num ser distante, podemos tocar num ser próximo: o resto ultrapassa a força humana. Escrever cartas é pôr-se a nu perante os fantasmas; eles esperam avidamente por esse momento. Os beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. É graças a esse abundante alimento que eles se multiplicam de forma tão extraordinária. A humanidade sente-o e luta contra o perigo: tentou eliminar tanto quanto podia o elemento espectral entre os homens, tentou conseguir entre eles relações naturais, tentou restaurar a paz das almas inventando o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas isso já não serve de nada (essas invenções surgiram quando a queda já tinha sido desencadeada): o adversário é tão mais calmo, tão mais forte. Depois do correio, inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os espectros não morrerão à fome, mas nós pereceremos.

Carta de Kafka a Milena, escrita no começo do mês de Abril de 1922.