segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Led Zeppelin: Assim se fez o rock

Led Zeppelin: John Paul Jones (esq.), John Bonham (centro sup.), Jimmy Page (centro inf.), Robert Plant (dir.)

Em 1967, o jornal Melody Maker apresentava a sua lista dos mais excitantes novos guitarristas. À luz dos anos que entretanto passaram, nomes como Eric Clapton (The Yardbirds, John Mayall Blues Breakers, Cream, Derek and the Dominos), Jeff Beck (The Yardbirds, Jeff Beck Group), Jimi Hendrix (Experience), Pete Townshend (The Who) ou Jimmy Page (The Yardbirds, New Yardbirds, Led Zeppelin), parecem não causar grandes discordâncias. No entanto, se a maioria desses guitarristas tinha já, por essa altura, gravado obra meritória, um havia que era realmente uma aposta. O nome de Jimmy Page circulava abundantemente nas bocas dos ‘conaisseurs’, é certo, mas, à luz do que hoje se sabe, não passava ainda de um músico à procura de uma voz própria e, não menos importante, de um veículo que lhe permitisse desenvolver criativamente a tradição musical estadunidense que então estava em voga em clubes como o Pink Flamingo, uma espécie de CBGB londrino (ambos começaram por dedicar-se à country, ao bluegrass e ao blues antes de abrirem as portas a outros géneros) que, nessa década, pelo simples facto de atrair todo o tipos pessoas e convidar a todo o tipo de experiências – viam-se desde marinheiros à procura de companhia até músicos que, daí a pouco, se tornariam nas novas referências – era tão obrigatório para a comunidade blues/jazz, quão obrigatórios se haviam tornado para a comunidade psicadélica sítios como o ‘Ally Pally’ (Alexandra Palace) ou o UFO. Tal como no CBGB, também no Pink Flamingo a audiência se confundia com o palco – era uma comunidade de músicos que se revezava. Jimmy Page fazia parte dessa comunidade e não tardou a ser convidado, enquanto músico adicional, para tocar com nomes tais como Donovan Leitch, The Kinks, The Who, Them, The Pretty Things ou Herman’s Hermits, antes de integrar uns Yardbirds moribundos que, às mãos de um guitarrista com créditos por firmar, se transformariam nos Led Zeppelin.
Inicialmente apelidados de New Yardbirds devido a obrigações contratuais, os Led Zeppelin eram, porém, uma banda inteiramente diferente dos originais Yardbirds. Tinham ainda como grande referência o blues do delta do Mississipi, contudo, e porque Londres vivia os anos dourados do rock, estavam dispostos a correr riscos. Tinham-se juntado a Page, Robert Plant, na altura um ilustre desconhecido, John Paul Jones e John Bonham, ambos músicos de estúdio de primeiríssima água (Jones foi uma presença importantíssima em Sunshine superman (1966), de Donovan Leitch, e, ainda que não creditado, em Their satanic majesties request(1967) dos Rolling Stones).
O burburinho instalava-se. Lançado em 1969, o álbum epónimo apanharia, ainda assim, todos de surpresa. Obra basilar, Led Zeppelin reunia de forma exemplar o rock (“Good times bad times”, “Dazed and confused” e “How many more times” – esta última bem ao estilo de uns Cream, mas com a matiz inconfundível dos Led Zeppelin), a country (“Babe, I'm gonna leave you” – a canção com que Plant terá feito o seu ‘exame de admissão’ – e “Black mountain side”), a pop (“Your time is gonna come”) e até um exercício de proto-punk (“Communication breakdown”). A música popular moderna conhecia um outro enorme capítulo da sua história: o rock ganhava o seu paradigma. No processo, o grupo fez aquilo que era comum fazer-se do outro lado do Atlântico. Desde há muito que os ‘bluesmen’ se pilhavam mutuamente, pelo que, em 1969 era já impossível dar crédito a um ou outro artista por ter escrito esta ou aquela canção. Assim, ainda que tenham sido processados alguns anos mais tarde, os Led Zeppelin não se coibiram de pilhar, de forma contínua, a Blind Willie Johnson, Bukka White, Howlin' Wolf, Muddy Waters, Robert Johnson, e também a Bert Jansch (Pentangle), Davey Graham, John Fahey ou a Owen Hand. Escusado será dizer que os Led Zeppelin ganhariam em tribunal. Dir-se-ia que o grupo samplava em vez de pilhar, uma vez que o material se transformava nas suas mãos.
O segundo volume seguir-se-ia nesse mesmo ano. A receita era em tudo semelhante à do seu antecessor: música tradicional estadunidense levada a passear com o pedal do acelerador posto a fundo. Era uma confirmação, um registo que lhes permitia solidificar a posição enquanto se preparavam para mudar as regras do jogo que eles próprios tinham inventado. Assim, Page e Plant refugiar-se-iam na localidade galesa de Bron-yr-Aur a fim de escreverem o tomo seguinte. Abriam a janela e à sua volta apenas viam ovelhas que, de quando em quando, se chegavam mais perto da casa onde viviam e trabalhavam. Cada um fazia a sua própria linha de cocaína (não existem indícios que comprovem o envolvimento das ovelhas em tais práticas); tinham conta aberta numa loja onde, impreterivelmente, levantavam a diária de sidra; e descobriram uma velha espingarda que passaram a apontar aos esquilos que se achavam nas redondezas – dizem que, talvez por causa da sidra, nunca acertaram em nenhum.

Da esquerda para a direita: John Paul Jones, Robert Plant e Jimmy Page

Stairway to Heaven

Led Zeppelin III (1970) seria diferente de tudo o que a banda havia feito até à data: o rock bombástico que havia predominado nos álbuns anteriores via-se agora ladeado por momentos pastorais, naquilo que terá sido uma espécie de teste para a concretização de Led Zeppelin IV (1971 – também conhecido por ‘Four symbols’ ou ‘Zoso’, por causa das runas adoptadas por cada um dos elementos enquanto símbolos pessoais. Ou melhor: apenas Jones e Bonham adoptaram runas já existentes, uma vez que tanto Page como Plant decidiram encomendar as suas…). Com efeito, o quarto álbum do grupo volta a unir os ambientes bucólicos da paisagem campestre de Hampshire com a trepidação frenética do rock zeppeliano. Porém, a sua arquitectura é mais certeira, a escolha de canções agradavelmente mais concisa e o resultado mais monolítico. Estranhamente, Led Zeppelin IV era uma obra desprovida de nome e de assinatura. Seguindo aquilo que os Beatles haviam feito no seu ‘White album’ (1968), os Led Zeppelin não só se recusaram a baptizar o álbum (Led Zeppelin IV é apenas a designação mais comum) como foram férreos na sua vontade de que a capa não possuísse quaisquer inscrições. “O génio de Jimmy Page que as pessoas tendem a esquecer tem a ver com sua visão punk ‘anti-establishment’”, disse Jack White (White Stripes, The Raconteurs) à revista Uncut (edição de Julho de 2006). Page dizia das suas: “Nomes, títulos e coisas dessas não significam nada […] O que importa é a nossa música.”
O cenário da escrita e posterior gravação voltava a ser o oferecido pela casa em Bron-yr-Aur. Page e Plant continuavam a ordenar linhas de cocaína, a beber sidra e a atirar sobre os pobres dos esquilos. Jones e Bonham juntar-se-lhe-iam mais tarde, exactamente uma semana antes do estúdio móvel dos Rolling Stones chegar, semana essa em que ensaiariam o material já escrito e tentariam desenvolver outras ideias enquanto banda. Contudo, quando o estúdio móvel chegou, o grupo tinha ainda muito trabalho de composição pela frente. As ideias eram gravadas pouco depois de surgirem; algumas resultariam em canções que podemos ouvir em Led Zeppelin IV, enquanto outras, à altura ainda incompletas, apenas veriam a luz do dia em Physical graffiti (1975). Haviam ainda algumas especificidades em relação ao som que Page procurava. Tentavam-se várias formas de captar o som de uma guitarra; Plant era obrigado a cantar a mesma canção vezes sem conta, de forma a delimitarem-se entoações, harmonias e tempos. Uma destas especificidades mais conhecidas é o som de bateria que abre “When the levee breaks”. Aquela batida prodigiosa, uma das mais libidinosas de todo o rock e a primeiríssima a ser samplada pelos Beastie Boys (em “Rhymin’ and stealin’”), viu-se envolta naquela reverberação que tão bem a distingue ao ser gravada nas escadas da casa, colhendo assim a gravação também o próprio ambiente que rodeava o espaço. Conscientes ou não disso, os Led Zeppelin estavam a transformar as ideias que Edgard Varèse (1883-1965) havia utilizado no seu Poème eléctronique (1958), enquanto música que deveria interagir com o espaço envolvente, no caso um pavilhão de Le Corbusier, em algo utilizável em discos populares. Outros lhes seguiriam o rasto: os Joy Division em Closer (1980); os Arcade Fire em Neon bible (2007); ou até os ‘nossos’ Madredeus em Os dias da Madredeus (1987).
Mas nem só de referências para o futuro se fazia Led Zeppelin IV. “The Battle of Evermore” e “Going to California” faziam a ponte para o álbum anterior, no qual o grupo procurava de alguma forma igualar a música dos Crosby, Stills & Nash e de Joni Mitchell. A letra de “Going to California” era bastante explícita: “Someone told me there's a girl out there / With love in her eyes and flowers in her hair […] They say she plays guitar and cries and sings”. Robert Plant diria alguns anos mais tarde que “quando se está apaixonado por Joni Mitchell é imperioso que se escreva sobre ela de vez em quando”. E se Joni Mitchell estava do outro lado do Atlântico, o mesmo não acontecia com Sandy Denny (Fairport Convention, Fotheringay). Depois de ter escrito a letra de “The battle of evermore”, Plant percebeu que iria necessitar de outra voz. Sandy aceitou e, segundo Plant, «resolveu aquilo em quarenta e cinco minutos».
Led Zeppelin IV completar-se-ia com canções rock tipicamente zeppelianas: o deboche de “Black dog” – “Hey, hey, mama, said the way you move / Gonna make you sweat, gonna make you groove”; a combustão espontânea de “Rock and roll”; o lado Tolkiano de “Misty mountain hop”; a explosão rítmica de “Four sticks”; e a pretensão musical e lírica de “Stairway to Heaven” que se tornaria no grande ‘tour de force’ zeppeliano. No dia anterior à chegada do estúdio móvel, Bonham e Plant haviam saído. Page e Jones haviam ficado na Headley Grange a fim de organizarem as várias partes que o guitarrista havia composto. O projecto assumia proporções épicas enquanto por toda a casa se podiam ouvir as diferentes partes a formar um todo uno e indivisível. Existem ‘bootlegs’ que transmitem bem o ambiente vivido nessas poucas horas: guitarrista e baixista trabalhavam a ligação para o solo de guitarra; Jones tentava inserir teclados; Page gritava, “Deves estar maluco!”. Plant e Bonham regressavam. O vocalista sentava-se à frente da fogueira e a letra, talvez por causa da sidra, chegava até ele vinda vá lá saber-se de onde. A sua mão pegou num lápis e, de repente, estava a escrever: “There's a lady who's sure all that glitters is gold / And she's buying a stairway to heaven.”

Jimmy Page e Robert Plant

Dazed and confused

The Song Remains the Same” era um embuste. Em vez de repetirem a receita de Led Zeppelin IV, os Led Zeppelin revelaram uma nova face da sua criatividade musical com Houses of The Holy (1973). Este abria todo um leque de novas possibilidades, desde o funk descompassado de “The crunge”, até às ressonâncias progressivas de “The rain song” e “No quarter”, passando ainda pelo balanço reggae de “D'yer mak'er”. Mais do que um risco, Houses of The Holy era a certeza de que, então, tudo era permitido aos Led Zeppelin. De resto, a liberdade que se sente em Houses of The Holy apenas encontrava paralelo na forma como o grupo vivia as suas inúmeras digressões: a sidra dava lugar à vodca; as linhas de cocaína continuavam em cima da mesa de vidro. O grupo remodelava os hotéis por onde passava; os seguranças faziam a lei.
Por alturas da edição de Physical graffiti, os Led Zeppelin eram já a maior banda de rock do mundo, e Physical graffiti, à imagem do seu predecessor, adquiriria o estatuto de fotografia de época. Os quinze temas dividiam-se por dois discos e em dois grandes grupos: as canções que haviam sido recentemente compostas e as canções que tinham sido deixadas de fora dos alinhamentos dos álbuns precedentes. Seria, com efeito, o canto do cisne da banda no que diz respeito à excelência.
Presence (1976) e In through the out door (1979) assinalariam a decadência causada pelo infortúnio (o grave acidente rodoviário da família Plant e a morte de Karac Plant, filho de Robert, devido a uma infecção respiratória) e pelo crescente consumo de drogas. Em In through the out door, os Led Zeppelin valiam-se dos esforços sóbrios, mas insuficientes, de Plant e Jones. A nota ‘Dear John’, que podemos encontrar na capa, seria profética. Com a morte de Bonham, em 1980, os Led Zeppelin estavam de saída. Os esquilos agradeciam.

Led Zeppelin, Mothership
Escrito em 2008 para o Bodyspace, a propósito da edição da compilação Mothership (Atlantic, 2007).