quarta-feira, 2 de abril de 2008

A América e os americanos

John Cheever, Falconer

Em entrevista a Robert G. Collins, John Cheever afirmou que se sobre Falconer havia recaído algum do imaginário yeatsiano era porque «ninguém conseguia escrever bem sem ter Yeats no pensamento». No entanto, a profundidade da marca yeatsiana era farta, mais farta do que Cheever estava disposto a admitir. O poema The second coming («Turning and turning in the widening gyre / The falcon cannot hear the falconer…») era a chave. Não só carregava textualmente o nome do romance de Cheever como se espraiava num discurso provido do mesmo tom apocalíptico: a Humanidade que, levada pela soberba, tenta ascender a um lugar superior na cadeia mística, destruindo dessa forma o natural equilíbrio das coisas e, consequentemente, destruindo-se a si própria. Contudo, enquanto William Butler Yeats invocava directamente a Humanidade pelo seu todo, Cheever produzia aquilo a que A.M. Homes classificaria como «um espantoso exemplo de transformação do estritamente pessoal no profundamente público». Ou seja, no romance de Cheever o apelo é feito ao indivíduo enquanto parte simbólica do colectivo. Ezekiel Farragut, um professor condenado à prisão pelo crime de fratricídio, mais do que qualquer outra personagem, representa esse ser caído, confundindo-se por vezes com o próprio autor que, percebendo a desgraça enquanto algo que apenas o é verdadeiramente quando vivido na primeira pessoa, a dotou com alguma da sua própria história: o sentimento de rejeição proveniente de uma história familiar segundo a qual o pai havia, aquando da gestação do escritor, convidado um médico para jantar a fim de acertar os pormenores de um aborto (este acontecimento havia já aparecido em The wapshot chronicle); o empobrecimento da família e a consequente tomada das rédeas financeiras por parte da sua mãe («aquela mulher a servir na bomba de gasolina num casaco de ir à ópera»); a relação conturbada com o irmão, a dualidade do ser humano retratada na disparidade existente entre um lado social honrado e a corrupção interna (Farragut é, como já referimos, preso pelo assassinato do irmão; Eben, irmão de Farragut, é descrito da seguinte forma: «Achava a maior parte dos criados, barmen e empregados impertinentes e ir almoçar com ele acabava sempre numa cena. […] aos sábados de manhã lia para os cegos na Twin Brooks Nursing Home»); a homossexualidade ou o «estar apaixonado por si próprio» (o tema foi uma quase constante na produção de Cheever: a homossexualidade estereotipada em Clancy in the Tower of Babel; a sua apreensão face à homossexualidade em The wapshot chronicle; e, por fim, a aceitação da sua orientação bissexual em The leaves, the lion-fish, and the bear e Oh what a paradise it seems); e a dependência de drogas. Porém, se a força resultante da aproximação entre o realidade e a ficção é inquestionável – e dela muito beneficia a obra no que à verosimilhança diz respeito –, o cenário escolhido por Cheever não terá menor importância. Com efeito, o estabelecimento prisional de Falconer oferece à narrativa uma maior abrangência espacial do que à primeira vista se nos afigura. A enumeração das várias designações do estabelecimento prisional («Por cima do brasão havia uma declinação dos nomes do lugar: Cadeia de Falconer 1871, Reformatório de Falconer, Penitenciária Federal de Falconer, Prisão Estadual de Falconer, Estabelecimento Correccional de Falconer, e o último, que nunca pegara: Casa da Aurora») é, pela descontinuação destas, uma desconsideração pelas próprias fronteiras da prisão. A acção desenrola-se pois na América, expõe a América, denuncia a América; toma partido pelos americanos de quinta categoria – da categoria F («F de fodidos, foleiros, fuinhas, fressureiros, fanchonos, fatochas […], fantasmas, fofos, fanáticos, fanados, fininhos») –, os mesmos que sonham com melhores dias, mas que, no fundo, desconhecem o exacto significado daquilo com que sonham. Porque não é apenas a esperança que se perde em Falconer; perde-se também a memória do tempo em que a palavra ‘esperança’ ainda tinha algum valor semântico.


Referência bibliográfica:
John Cheever, Falconer. Lisboa: Sextante Editora, 1.ª edição, Setembro de2007, 207 pp. (tradução de José Lima; obra original: Falconer, 1977).