sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Alienantes e alienados

Fiódor Dostoiévski, Demónios

Primeira redundância: um livro começa-se a ler pela capa, pelo nome nela inscrito. Segunda redundância: a ou as epígrafes são chamadas de atenção por parte do autor que, não raramente, apontam para um certo entendimento da obra: o primário, aquele que estava na mente do escritor aquando da redacção; ou o preponderante, aquele que a determinada altura acabou por impor-se.
Em Demónios, obra que se encontra entre os melhores escritos de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), e que agora foi publicada pela Presença, ambas as redundâncias atrás enunciadas adquirem uma importância invulgar. As suas duas epígrafes, uma tirada do poema Demónios, de Púchkin, e a outra do Evangelho segundo S. Lucas (VIII, 32-37), a qual relata como Jesus Cristo transferiu os demónios de um homem para «uma vara de muitos porcos» que Lhe rogaram «que lhes concedesse entrar neles», são autênticas miniaturas à escala da obra que se lhes segue. E, claro, por tão bem traçarem as coordenadas da obra acabam por também limitar o seu entendimento, o que acaba por ser de alguma valia quando estamos, como agora, perante uma tradução.
A esse respeito, e começando por onde sempre se começa, a presente tradução de Demónios logo se faz notar pelo título escolhido. Com efeito, Nina Guerra e Filipe Guerra, ao invés de optarem pelo habitual Possessos, entenderam ser Demónios o título que mais se adequava à presente tradução, quer por causa das epígrafes, como por ser a tradução literal do original Béssi. Era, pois, vontade de Dostoiévski colocar a tónica nos demónios; os demónios que outrora haviam sido possessos e que agora se tornavam eles mesmos possuidores.
Aqui, e ao contrário do que costuma acontecer no catálogo dostoiévskiano, não vemos em Demónios a figura do pecador à procura de redenção. Em vez disso é-nos narrada, por uma personagem menor, a história de como um homem nega o arrependimento e, simultaneamente, chama para junto de si, para a sua causa, outros que, esses sim, se tornam possessos.
Era claro para Dostoiévski que a Rússia do século XIX atravessava um momento de viragem: sob a acusação de traição, o estudante Maxim Ivanov havia sido assassinado por um grupo às ordens do líder niilista Sergei Netchaiev que, juntamente com Mikhail Bakhunin, escreveria uma espécie de guia prático do terrorismo, o Catecismo do revolucionário. Contudo, o escritor desconhecia que este seu alerta para o estado das coisas ganharia, com o passar dos anos, a condição de profecia.
Iniciando-se calma mas tensamente com a relação de mútuo interesse entre Stepan Trofímovitch Verkhovênski, um professor desacreditado nos círculos eruditos de Moscovo, e Varvara, uma aristocrata que procura em Verkhovênski algum do seu emulado requinte intelectual, o enredo de Demónios logo se adensa com a entrada em cena de Nikolai Vsevolodovitch Stavróguin, filho de Varvara e antigo aluno de Verkhovênski.
Regressado a casa, à província, depois de uma viagem pela Europa e de uma longa permanência em Moscovo, Nikolai torna-se no centro das atenções. Primeiro devido à sua pose de pessoa viajada, vivida, depois por causa de um acontecimento que lança o leitor directamente na trama de Demónios: Nikolai expressa todo o seu desrespeito em relação àquilo a que Tolstoi chama, em A morte de Ivan Ilitch, de «comme il faut», ou seja, em relação aos valores sociais tidos como lei que a todos toca, ao morder a orelha do governador de Skvoréchniki.
Dá-se assim seguimento às palavras de Ivan Karamazov, em Os irmãos Karamazov: «se Deus não existe, tudo é permitido.» Toda a ânsia pela salvação sentida por Ivan Karamazov, mas também por Raskólnikov, em Crime e castigo, se transforma numa espécie de crença naquilo que é imutável: a própria mudança.
Quando, em 1872, Dostoiévski publicou Demónios essa mudança era evidente: a ascensão dos revolucionários niilistas e do socialismo ateu, e a queda dos valores morais, levaram o escritor a encher inúmeras páginas do periódico O mensageiro russo com aquilo a que Filipe Guerra classificou como sendo “uma crítica a todas as ideologias, considerando que elas pretendem ultrapassar a condição humana”, e “uma obra aberta e, mais importante ainda, premonitória no que respeita às grandes derivas totalitárias do século XX, à semelhança das obras de Nietzsche”.

Referência bibliográfica:
Fiódor Dostoiévski, Demónios. Lisboa: Editorial Presença, 1.ª edição, Março de 2008, 664 pp. (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra; obra original: Béssi, 1872).