quarta-feira, 24 de setembro de 2008

As diferentes faces de um mesmo jogo

José Donoso, Casa de campo

Tudo se apresentava como sempre fora. Marulanda, a casa senhorial dos Ventura y Ventura, continuava a impor-se na paisagem enquanto única infracção ao carácter plano desta. Havia ainda a descontinuação que se fazia anunciar primeiramente na vedação constituída por lanças com pontas de ouro e depois no tamanho da própria casa, com as suas inúmeras divisões, uma delas dotada de um enorme fresco ‘trompe l’oeil’ onde o onírico e o real se misturavam quais diferentes faces de um mesmo absoluto. Esta descontinuação demarcava, ou pretendia demarcar, a fronteira entre tudo aquilo que era sujo, mau, inferior e exterior, e tudo aquilo que, durante os três meses de Verão que a família (uma matriarca, seis casais e um total de trinta e cinco filhos, primos e irmãos) lá passava, se coadunava com a sua posição social. Porém, por debaixo desta imensa casa e do enorme poder detido pelos Ventura y Ventura, “donos de uma província inteira”, estava o ouro comprado aos nativos, claramente de condição inferior, sujos e alegadamente antropófagos, armazenado numa pequena e mal iluminada cripta. Por debaixo das convenções estava um descomedimento de decadência e depravação que cedo tomava forma na brincadeira burlesca levada a cabo pelas crianças a que José Donoso, enquanto autor e narrador, e levando em consideração a afirmação de Paul Valéry que dizia ser incapaz de escrever um livro com uma frase do tipo “A marquesa saiu às cinco”, denominou de, nem mais, “A marquesa saiu às cinco”. Somavam-se-lhe os roubos, as traições, a pequena intriga. Os lacaios, que eram substituídos todos os anos, eram o braço armado: repreendiam, humilhavam e abusavam sexualmente das crianças que incorriam num qualquer incumprimento, fazendo-o sem contudo deixar marcas que levassem os patrões a tomar medidas e, nesse caso, a subverter o bom funcionamento da casa.
Nesse Verão, porém, a tradição seria quebrada: os Ventura y Ventura, acompanhados dos seus lacaios, decidem fazer um passeio a um local edénico deixando para trás as crianças que ficam entregues a si mesmas durante um dia. Estas, crendo que os adultos não mais voltarão, logo se iniciam em actos vertiginosos como o sejam o roubar do ouro da família, o alagar das lanças da vedação ou o transfigurar-se com a ajuda dos vestidos e perfumes dos pais.
José Donoso, sempre enquanto autor e narrador, instala assim o clima que pretende usar como metáfora para um Chile sob a ditadura de Augusto Pinochet. O absoluto faz-se directamente pela crónica daquele Verão na vida dos Ventura y Ventura e indirectamente pela alegoria ao panorama social e político do Chile nos anos ’70. Contudo, este romance de Donoso é ainda sobre a escrita de romances e as convenções que tendem a conduzir ao mimetismo literário. Neste ponto não raras as vezes em que o autor e narrador se auto-impõe na história enquanto figura omnipotente: «Por esta altura da minha narração, os meus leitores estarão talvez a pensar que não é de ‘bom gosto’ literário que o autor puxe, a cada instante, a manga de quem lê para lhe recordar a sua presença, semeando o texto com comentários que não passam de relatórios sobre o discurso do tempo ou a alteração de cenografia» (p.47); «Os meu leitores estarão a perguntar-se qual seria o segredo que produziu esta ruptura entre irmãos e a acusar o escritor de utilizar a desacreditada artimanha de reter informação com o fim de aguçar a curiosidade do leitor» (p.92). Ao fazê-lo, Donoso justapõe as técnicas realistas e pós-modernas: a discrepância entre a arte e a realidade, o artifício que serve para retratar a real. A ficção admite que as convenções, aceites como tal, dêem origem a outras histórias paralelas à dos Ventura y Ventura, enquanto a estrutura motiva o interesse pelo jogo que Donoso nos propõe: um jogo onde, sabemos de antemão, é ele quem dá as cartas e ditas as regras.

Referência bibliográfica:
José Donoso, Casa de campo. Lisboa: Cavalo de ferro, 1.ª edição, Março de 2008, 440 pp. (tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu; obra original: Casa de campo, 1979).