quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Sonho de uma noite de Verão

Joni Mitchell

Assim: um pé e depois o outro, ambos nus, sobre uma rocha que, de quando em quando, recebia as ondas de um mar cuja imensidão o seu olhar media. Atrás de si, as roseiras bravas. O cheiro doce que delas emanava confundia-se com o eterno desdobrar das ondas, com um sol de final de tarde, com a aragem própria de um Setembro ainda recente. Alongou mais uma vez os olhos pelo mar e notou que estava só. Viu ao longe uma família de focas a desenhar-se contra o céu, acima das águas, desaparecendo pouco depois e ressurgindo adiante. Reconheceu então que uma mulher nunca está só quando olha o mar.
Inquietou-se depois perante a ideia de que teria algo para fazer; não a casa que estava limpa, e também tinha comida no frigorífico suficiente para uma semana. Deixou-se ficar. Não havia nada nem ninguém à sua espera. Partiu quando já só uma réstia de dourado planava sobre as águas, apercebendo-se apenas no caminho de casa do real fundamento da sua inquietação: não sabia o que fazer até à chegada da hora em que o cansaço a levaria a procurar a cama. Não voltaria a rever os filmes antigos que a tinham acompanhado durante os nove anos que entretanto haviam passado sobre a edição de Taming the tiger, e tão pouco esperava encontrar conforto nos livros que conhecia de cor. Encontrava-se sozinha; Chaplin e Bergman haviam levado Kipling e Yeats a tomar um copo. Sentou-se por isso ao piano. Os seus dedos principiaram a arrancar dele padrões que exprimiam na perfeição aquele final de tarde. E porque nada mais tinha com que se inquietar (- A casa está limpa, e tenho comida no frigorifico suficiente para uma semana), decidiu prosseguir. Nasceram ao todo sete padrões diferentes, um para cada dia da semana, aos quais chamou de “One week last Summer”. Deve ter fumado um cigarro a seguir. Havia terminado a parte ‘durante os nove anos que entretanto haviam passado’.
Provavelmente não o sabia ainda. O contar dos dias era longo e Joni Mitchell havia anunciado a sua irrevogável saída de cena com a compilação Travelogue (2002). No entanto, quando recebeu um telefonema de Jean Grand-Maitre, director artístico do Ballet de Alberta, era quase certo que as possibilidades se haviam tornado em génese. Sabia-o agora. Grand-Maitre falou-lhe da eventual realização de Dancing Joni (mais tarde rebaptizado de The fiddle and the drum), um bailado que teria por base algumas das suas canções. Joni gostou da ideia e subiu a parada: não era apenas às canções que iria regressar; ocupar-se-ia também da mise en scène. Pegou para isso em algumas telas que tinha planeado expor em breve e juntou-lhe duas canções: “If” e “If Had a Heart I'd Cry”. Shine era agora uma evidência.
Seguiu-se a materialização. Editado no passado mês de Setembro, Shine marca o regresso de Mitchell às inquietações político-sociais – largamente evidenciadas no álbum Dog eat dog (1985), e em canções como “Turbulent indigo” (Turbulent indigo, 1994), “Banquet” (For the roses, 1972) e “The fiddle and the drum" (Clouds, 1969) –, que agora se vêem assentes em frases musicais onde a forma é quase inexistente, e onde a voz, profunda, se acha num misto de ira e esperança. Por vezes, as melodias não são mais do que panos de fundo sobre os quais proliferam palavras que se desdobram entre o real e o imaginário, obrigando o ouvinte a ligar os pontos entre sugestão e realidade. “This place”, por exemplo, parece lidar com a história de um urso que, uma vez por outra, ronda a sua casa, uma imagem que poderia servir de reforço a “One week last Summer”, quando na realidade nos remete para a diminuição dos habitats naturais; a balada “Strong and wrong" poder-se-ia, num primeiríssimo contacto, encaixar na veia romântica pela qual Mitchell é mais conhecida, porém, frases como «Onward Christian soldiers...» logo se apressam a encaminhar o ouvinte para a religião enquanto fomentadora da guerra, para a troca do amor espiritual e romântico por outras grandezas – assim se afiguram a Mitchell – menos laudáveis.
Ao enveredar por esse desdobramento, Mitchell parece querer instigar o ouvinte à participação cívica mas, a forma como o faz limita consideravelmente o impacto da mensagem. As letras raramente saem do registo panfletário – “If”, cujo texto se serve de um poema de Rudyard Kipling, é a grande excepção – e existe uma separação demasiado radical entre conceitos tão difusos como difusa – e confusa – é a percepção colectiva das fronteiras entre o “Bem” e o “Mal” – talvez porque nada tenha sido sentido de uma maneira impessoal ‘durante os nove anos que entretanto haviam passado’; talvez porque a parte jamais poderá julgar o todo. Assim, o que era verdade – entendemo-lo nós – para canções que abordavam, não as largas avenidas, mas as lúgubres esquinas do amor romântico, deixa de o ser quando o objecto retratado extravasa as fronteiras do pessoal. Perdoar-se-ia, contudo, este passo pejado de ingenuidade – são coisas que se perdoam a quem, talvez ainda embutido do espírito da década de sessenta, conserva os sonhos da juventude –, não fosse a qualidade destes textos ser manifestamente inferior à dos textos incluídos nos álbuns anteriores. Neste ponto, Shine é, de facto, um rude golpe para quem até agora seguia a velha máxima que dizia que os álbuns de Mitchell se lêem primeiro e ouvem depois.
Resta-nos, em jeito de consolo, o brilhantismo dos temas “One week last Summer”e “Night of the iguana”; o momento em suspenso que é “Shine”, a audácia de “Hana” (talvez o momento esteticamente mais próximo de Dog eat dog) e a certeza de que uma Joni Mitchell em baixo de forma continua, ainda assim, a situar-se muito para além dos seus pares.

Joni Mitchell, Shine
Joni Mitchell, Shine (Hear Music, 2007)
Escrito em 2007 para o
Bodyspace.