sábado, 18 de outubro de 2008

Música caseira

Há alguns anos, Marcus Forsgren ouviu pela primeira vez os Beach Boys. Decidiu nesse momento que queria ser músico e o clima frio da Noruega ajudou-o: a sua vida passou a fazer-se entre a colecção de discos e os instrumentos que tinha em casa.

The Lionheart Brothers, 2007

Ao ouvir Dizzy kiss, o álbum de estreia dos noruegueses Lionheart Brothers, é-nos difícil pensar num país frio e pardacento. É-nos também bastante complicado pensar em Dizzy kiss enquanto álbum de estreia, tal é o grau de maturidade que carrega em cada canção. Marcus explica-nos a sua fórmula: «Ouço música desde que me conheço, vários tipos de música, de diferentes proveniências e épocas. Gosto muito dos CAN e dos Stereolab, mas também dos Beach Boys, Cocteau Twins, The Cure, The Stooges e Steve Reich. Neste momento ando a ouvir muito Edward Grieg; é um compositor erudito norueguês que conseguiu combinar a tradição norueguesa com a vanguarda da época [mostrámos-lhe Fernando Lopes-Graça e gostou]. Também costumo ouvir, embora menos assiduamente, Gavin Bryars, Henry Cowell, Dimitri Shostakovich… imensa música erudita. Depois pego nos elementos que me interessam e começo a compor; não tenho fronteiras: não gostaria de reger-me apenas por um único rótulo e dizer ‘nós tocamos pós-rock’ ou ‘nós tocamos shoegazing…’. Penso que devemos procurar as nossas influências em vários contextos, porque um desafio só o é verdadeiramente quando o enfrentamos pela primeira vez.»



“50 souls and a discobowl”


Mas se os Lionheart Brothers se fazem de várias influências, o resultado não poderia ser mais coeso. Afunilando a variedade apresentada por Marcus ser-nos-ia possível apontar as mais óbvias: Beach Boys, Strawberry Alarm Clock, Tahiti 80 e Stereolab. O músico escapa-se, porém, aos demais e principia o relato de uma lembrança que, a julgar pelo tom com que as palavras lhe saem da boca, lhe é muito querida. Lembra-se perfeitamente do dia em que descobriu Pet sounds, dos Beach Boys: «Foi num dia cinzento, já se sabe. Era miúdo e ainda andava à procura da minha identidade; acontece-nos a todos, suponho. Naquela idade os ídolos são a vida de um gajo; e uns tipos que viviam sob a imagem do surf, dos carros e das miúdas faziam de mim um alvo fácil. Porém, havia também a música: foi nesse dia cinzento que comecei a gostar realmente de música: ouvi o disco e, durante aqueles quarenta minutos, saí de mim, tive uma epifania. Penso que foi a partir desse momento que desejei ser músico; desejei poder provocar nos outros uma reacção semelhante à que acabara de ter.»
Marcus passou à acção: convenceu dois amigos a juntarem-se-lhe na aventura e, pouco depois, adoptando o nome de um conto da escritora Astrid Lindgren («É uma história da qual todos gostávamos e pensámos que seria um bom nome para a banda.»), nasciam os Lionheart Brothers. A formação actual, todavia, apenas tomaria forma dois anos mais tarde. «Os Lionheart Brothers já existiam antes do Audun [Storset, guitarrista] se juntar a nós. Ele era nosso fã e nós fãs dele, pelo que, quando o nosso guitarrista desistiu, não foi difícil convencê-lo a juntar-se-nos. Eu já o tinha ouvido várias vezes ao vivo, e em todas elas havia saído do recinto completamente atónito. Ele utilizava afinações pouco convencionais, e a forma como distorcia ligeiramente a voz era muito sofisticada e agradável ao ouvido. Soube que tínhamos pernas para andar quando começámos a tocar e a gravar ‘demos’ juntos.»

The Lionheart Brothers, 2007

Depois de encabeçarem os tops de vendas na Noruega («Bem, a Noruega é um país pequeno, pelo que não é preciso vender muitos discos para se encabeçar essas listas.»), partiram para Austin, Texas, a fim de participarem no conceituado festival South by Southwest («Foi estupendo! Não sou um grande fã de festivais: a oferta acaba sempre por se sobrepor ao tempo e à atenção dispensada a cada concerto – e o South by Southwest é, nesse aspecto, um festival levado ao seu extremo. No entanto, é sempre bom participar neste tipo de eventos; gosto de tocar para públicos diferentes.») e, logo depois de uma pequena digressão pela Noruega, viram editado o seu registo de estreia no Reino Unido e o primeiro single deste, “Hero Anthem”, ser eleito pela Q Magazine como ‘Track of the day’, no passado mês de Outubro.
Não é, portanto, de estranhar que o grupo sonhe com o futuro: «Estamos a planear fazer uma paragem para escrevermos canções novas. Mas antes ainda temos umas datas na Suécia, na Dinamarca e no Reino Unido. Talvez depois disso… A escrita e os ensaios são as partes que mais nos agradam. O processo de ver um álbum a tomar forma interessa-nos muito mais do que a vida de estrelas de rock: somos noruegueses e, naturalmente, muito caseiros.»

The Lionheart Brothers, 2007

Patchwork

Parecem não haver finais felizes na Noruega. Marcus Forsgren, cantor e guitarrista dos Lionheart Brothers, é bastante claro: «Norway has the highest suicide rate after Japan.» Ou seja: «A Noruega tem a taxa de suicídio mais alta a seguir ao Japão.» Não estranhamos: da Noruega apenas conhecemos imagens de superfícies geladas, escassez de bacalhau e grupos de black metal. Pensamos: É um cenário desolado, demasiado desolado para que dele possa nascer algo que ponha fim à sua dolência. Supomos; supomos algo e ao fazê-lo incorremos no erro de confundir o mundo real com o outro com que amolecemos o nosso desconhecimento.
A noção de erro, essa, torna-se por demais evidente quando da Noruega nos chega uma banda que parece viver numa partitura de Gershwin, cheia de cor, ritmo e movimento. Não é exagero: Dizzy kiss, o álbum de estreia dos Lionheart Brothers, troca as voltas ao frio, ao bacalhau e ao black metal, ao assumir de peito aberto influências que passam pelos Beach Boys, Byrds e Zombies, ou seja, tudo malta da pesada, mas também por rapazes mais novinhos, daqueles a quem é difícil explicar o que é um pasodoble ou que os cromos com os jogadores do Benfica se colavam nas cadernetas com batata cozida. Falamos aqui da leveza pop dos Tahiti 80 e da propulsão pós-motorika dos Stereolab que, somadas à elegância das harmonias da malta mais entradota, resultam num achado cuja audição revela, por vezes, algo mais do que a mera soma das partes e nos leva a pensar nos XTC (sim, essa maravilhosa instituição). É que os Lionheart Brothers, apesar das diferenças, parecem querer entrar no jogo inventado pela banda britânica no magnífico Black Sea, de 1980. Ou seja, existe em Dizzy kiss uma vontade explícita de juntar o melhor de uma época dourada da produção musical com a produção actual, sendo que as principais diferenças entre ambas as bandas estão no desfasamento temporal e no facto de Andy Partridge ser um dos melhores escritores de canções do século XX, o que, naturalmente, levou a que os XTC, ao contrário dos Lionheart Brothers, fossem mais banda do que influências. Ainda assim, Dizzy kiss destaca-se da restante produção fonográfica de 2007 pela veemência e amplitude com que é capaz de trabalhar estéticas até agora apartadas. Se a escrita das canções é de uma qualidade que há muito julgávamos desaparecida, os arranjos não nos merecem menores elogios: momentos há que nos parecem saídos da pena de um Brian Wilson em dia mais ou menos, o que, para quem não nasceu Brian Wilson, ou vá, Judee Sill, corresponde a um bem-aventurado estado de graça.

 The Lionheart Brothers, Dizzy kiss

The Lionheart Brothers, Dizzy kiss (Racing Junior, 2007)
Escrito em 2007 para o Bodyspace.