sexta-feira, 11 de abril de 2008

A inabalável ordem das coisas

Nikolai Leskov - Lady Macbeth de Mtsensk

Nikolai Leskov não será o primeiro nome a surgir numa conversa sobre os grandes autores russos do século XIX. Ainda que as razões para uma tal falta de reconhecimento tenham desaparecido ou perdido a sua importância de outrora (Leskov foi alvo de censura devido às críticas que teceu ao Estado e à Igreja Ortodoxa; e, porque nunca renunciou à religião, foi menosprezado pela maior parte dos escritores russos da época e os seus escritos classificados de insurrectos pelo regime comunista), o certo é que a obra de Leskov esteve, até há poucas décadas, votada ao esquecimento. Valeram-lhe a ópera de Dimitri Shostakovich, Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, estreada em 1934, proibida em 1936 e revista como Katerina Izmáilova, em 1963; e o filme Sibirska Ledi Magbet (Lady Macbeth da Sibéria; 1962) do polaco Andrej Wajda.
Estas adaptações, para além de resgatarem Leskov ao iodo do tempo, tinham como outra felicidade o facto de insistirem numa mesma obra – aquela que é tida como sendo a obra-prima do autor –, o que desde logo deixava antever as maravilhas nela contidas.
Lady Macbeth de Mtsensk é, pois, uma pequena mas poderosa novela que conta a história de Katerina Izmáilova, uma jovem humilde que depois de casar por conveniência com Zinovi Boríssytch, um rico e próspero mercador, se apaixona por Serguei Filipych, capataz do marido. Principia-se então uma mudança a dois níveis: Katerina deixa de ser uma jovem submissa para passar a ser “completamente liberta”, iniciando-se pouco depois, levada pelo amor que sente por Serguei, no assassinato de todos quantos se oponham à sua felicidade. Assiste-se ainda a uma constante mudança sobre quem detém o controlo da situação – daí resultando uma notável dinâmica narrativa. Se a principio é Zinovi Boríssytch quem dá as cartas (“Tinham-na dado em casamento ao nosso mercador Izmáilov, de Tuskar, Gubérnia de Kursk, não por amor ou qualquer atracção, mas simplesmente porque Izmáilov a pedira em casamento, e, sendo ela uma moça pobre, não podia escolher noivo”), com o início da relação entre Katerina e Serguei, passa esta a possuir o poder sobre o desenrolar da acção (“Se, antes, ela não era uma mulher medrosa, agora sequer se pode adivinhar o que ela vai decidir: anda altiva, dá ordens a todos em casa e não larga Serguei de junto dela”), poder esse que mais tarde perderá e, num último momento, tornará a recuperar.
Apesar de condenáveis, nem por uma vez Nikolai Leskov se aventura a fornecer ao leitor uma explicação para as acções levadas a cabo por Katerina e Serguei. Ao contrário de, por exemplo, Lev Tolstoi, escritor que a partir de determinada altura se bateu por um certo de ideal de moralidade associada ao dever (em A morte de Ivan Ilitch, A sonata de Kreutzer e Khadji Murat), Leskov deixa a acção seguir livremente sem fazer juízos de valor, preocupando-se apenas em contar a história de uma forma admiravelmente simples, e deixando que a condenação, principalmente a de Katerina, fique a cargo do próprio destino, inadiável e inevitável.


Referência bibliográfica:
Nikolai Leskov, Lady Macbeth de Mtsensk. Lisboa: Editorial Hespéria, 1.ª edição, Setembro de 2007, 92 pp. (tradução de João Ferro e Mikhail Nenáchev; obra original: Леди Макбет Мценского, translit. Ledi Makbet Mtsenskovo Uyezda, 1865).