sábado, 20 de setembro de 2008

De como não morri e outras histórias

Peter Hammill

Peter Hammill tem um casaco de cujas mangas saiem canções em vez de mãos. O tempo e o uso fizeram dele uma peça que, a estes dias, se confunde com as linhas desajeitadas do seu corpo, com a marca que foi construindo no sofá, com a sombra que projecta nas paredes, nos móveis, no retrato dos seus pais. É-lhe estranho olhar para ela: move-se quando ele se move, acena-lhe se ele lhe acenar. Deve, portanto, ser a sua sombra. E no entanto não lhe vê os calções, nem a fisga, nem sequer um joelho esfolado, nada. É a sombra de um homem velho – disso tem ele a certeza: não conta pelos dedos, não fuma às escondidas, não colecciona álbuns do Mandrake. A sombra de um velho, de um homem cujo reflexo já não reconhece quando ao espelho se olha – de um homem velho. Mas não terá sido sempre assim? Não terá sido Hammill um homem velho durante toda a sua vida? – pois quem mais se põe a escrever tratados da alma se não um homem velho de vinte e três anos? Quem mais compreenderá, em ainda tão tenra idade, que os limites entre o certo e errado são, quase sempre, nebulosos?
Achamo-nos claramente na presença de uma figura cujo brilhantismo vai muito para além das primeiras impressões, sendo que a sua obra é, presumivelmente, tão complexa como quem a criou. E se Hammill é uma figura chave para o entendimento, pelo menos, daquilo que foi a nova música popular da segunda metade do século XX, não é apenas porque soube metamorfosear o “si” em vários “eles”; é-o também porque teve a coragem de permanecer independente, de se afastar dos outros e de si próprio – ter visão é, sobretudo, saber como e quando mudar. Foi assim que, na década de setenta, fez a ligação entre o glam-rock e o punk, para logo a seguir juntar o rock à música electrónica (olá Thom Yorke). No entanto, apesar da proeminência do seu papel enquanto músico e pensador, jamais se tinha acercado à séria da sua própria singularidade. Dizemos à séria porque se ao longo da sua carreira houve momentos nos quais se auto-cantou (houve-os, de facto), estes tinham sempre como receptor outro, ou outros, que não o próprio. Em Singularity, porém, Peter canta quase exclusivamente para si, num misto de expiação do passado e celebração da vida. Tem, de resto, razões para isso: em 2004, no dia seguinte ao lançamento de Incoherence – a sua obra-prima para o século XXI –, sofreu um ataque cardíaco que o colocou entre a vida e a morte. A experiência levou-o a adoptar uma postura diferente perante a vida: descobriu a singularidade, a sua singularidade, aquilo que o distingue dos demais. Está agora, sobretudo, feliz por ter escapado, e Singularity acaba por ser um ‘livrei-me de boa’. Isto é tão ou mais evidente quando Hammill relaciona a sua experiência com a da mãe, doente de Alzheimer, em “Meanwhile my mother”, e com a do afinador do seu piano, que morreu quando um condutor embriagado embateu contra o seu automóvel, em “Friday Afternoon” – o progressivo desaparecimento do mundo em que vive é um sinal de que também ele irá, inevitavelmente, desaparecer.
Mas eis que volta a amanhecer; eis que a luz do dia volta a percorrer as divisões da casa, demorando-se num ou noutro canto antes de prosseguir a sua marcha. Também ela acabará, eventualmente, por ceder à escuridão; também ele irá, num dia em tudo igual ao de hoje, fazer-se à estrada. É, pois, tempo de voltar a contemplar a sombra que projecta nas paredes, nos móveis, no retrato dos seus pais (presume que seja a sua sombra). Volta, como já (quase) o havia feito em A black box (1980), a escrever, cantar, tocar e gravar tudo aquilo que aparece no álbum. De resto as semelhanças entre os dois registos são notórias, principalmente se atendermos à forma como Hammill vai sobrepondo várias linhas melódicas (“Famous last words”), ou como junta o rock à electrónica (“White dot”). Mas existem mais olhares por cima do ombro: se a beleza de “Our eyes give it shape” nos remete para “I will find you”, do álbum Fireships (1992), e a vitalidade de “Vainglorious boy” nos lembra “Narcissus (Bar & Grill)”, de X my heart (1996), também a guitarra que principia “Naked to the flame” nos trás à memória o tema “Solitude”, incluído no álbum Fool`s mate, de 1971.
Dir-se-á, então, em jeito de pequena trama, que todos estes piscar de olhos poderão advir das remasterizações dirigidas pelo próprio, as quais, para além de abrangerem a sua discografia inicial a solo, tiveram ainda o condão de não deixar de fora a produção clássica dos Van der Graaf Generator, grupo de que Hammill foi membro fundador. É, de facto, perfeitamente concebível que estas lhe tenham avivado a memória, que lhe tenham feito pensar nos dias do antigamente, de quando ele, munido de muita arte e poucos engenhos, se lançava à descoberta das várias facetas do ‘eu’, do ‘eles’ e do ‘nós’, num processo em que quem ganhava eram sempre os outros, esses que também são eles, que também somos nós.
Saímos por isso à socapa (sai-se sempre à socapa quando se ganha): Singularity inscreve-se na marca dos grandes álbuns assinados por Hammill, dando seguimento à boa forma demonstrada em Clutch (2002) e Incoherence. É um olhar para trás, sim, mas um olhar para trás vindo de um homem cuja vida foi feita de olhares em frente, talvez à procura de apaziguação, talvez em busca de um final que não o abandonasse à mercê de um novo início. Um olhar para trás que nos parece convidar para um copo, porque nunca iremos morrer.

Peter Hammill, Singularity
Peter Hammill, Singularity (Fie! Records, 2006)
Escrito em 2007 para o Bodyspace.