Há
vinte anos o Fantasma lutava contra as injustiças do mundo por apenas cem
escudos. De SOC! em RIISCH!, de FUUUSCHH!!! em BUMP!, o Fantasma perseguia os
bandidos noite parda adentro («Agora… Ele não está a olhar.»), sempre de
mascarilha e fato de licra, a ocasional gabardina, os óculos de sol que lhe
ocultavam a identidade heróica. Se por acaso alguém lhe perguntasse o que fazia
ali àquela hora, respondia: «Gosto de passear à chuva.» Se nessa mesma noite
chuvosa não conseguisse recuperar o dinheiro que os bandidos haviam roubado,
desejava: «Espero que a tempestade leve o dinheiro para alguém que seja pobre e
faça bom uso dele.»
domingo, 19 de outubro de 2008
sábado, 18 de outubro de 2008
Male bonding
Costumo
chamá-lo de animal. Responde-me dizendo que se ele é um animal eu sou uma
zebra. Pergunto-lhe: «Uma zebra é um cavalo branco com listas negras ou um
cavalo preto com listas brancas?» Não responde, mas olha para mim como que à
espera de uma resposta. Avanço com outra pergunta: «Porque é o mar azul?» Torna
a não responder-me, e, desta vez, ameaça ir-se embora, pelo que decido abrir o
jogo: «O mar é azul porque o céu é azul.» Diz-me: «Ah, eu sabia.» Forço: «Mas
não sabes porque é o céu azul, pois não?» Torno a responder. Ele mostra-me os
números e as letras que já aprendeu na escola.
Música caseira
Há alguns anos, Marcus Forsgren ouviu pela primeira vez os Beach Boys. Decidiu nesse momento que queria ser músico e o clima frio da Noruega ajudou-o: a sua vida passou a fazer-se entre a colecção de discos e os instrumentos que tinha em casa.
Ao ouvir Dizzy kiss, o álbum de estreia dos noruegueses Lionheart Brothers, é-nos difícil pensar num país frio e pardacento. É-nos também bastante complicado pensar em Dizzy kiss enquanto álbum de estreia, tal é o grau de maturidade que carrega em cada canção. Marcus explica-nos a sua fórmula: «Ouço música desde que me conheço, vários tipos de música, de diferentes proveniências e épocas. Gosto muito dos CAN e dos Stereolab, mas também dos Beach Boys, Cocteau Twins, The Cure, The Stooges e Steve Reich. Neste momento ando a ouvir muito Edward Grieg; é um compositor erudito norueguês que conseguiu combinar a tradição norueguesa com a vanguarda da época [mostrámos-lhe Fernando Lopes-Graça e gostou]. Também costumo ouvir, embora menos assiduamente, Gavin Bryars, Henry Cowell, Dimitri Shostakovich… imensa música erudita. Depois pego nos elementos que me interessam e começo a compor; não tenho fronteiras: não gostaria de reger-me apenas por um único rótulo e dizer ‘nós tocamos pós-rock’ ou ‘nós tocamos shoegazing…’. Penso que devemos procurar as nossas influências em vários contextos, porque um desafio só o é verdadeiramente quando o enfrentamos pela primeira vez.»
“50 souls and a discobowl”
Mas se os Lionheart Brothers se fazem de várias influências, o resultado não poderia ser mais coeso. Afunilando a variedade apresentada por Marcus ser-nos-ia possível apontar as mais óbvias: Beach Boys, Strawberry Alarm Clock, Tahiti 80 e Stereolab. O músico escapa-se, porém, aos demais e principia o relato de uma lembrança que, a julgar pelo tom com que as palavras lhe saem da boca, lhe é muito querida. Lembra-se perfeitamente do dia em que descobriu Pet sounds, dos Beach Boys: «Foi num dia cinzento, já se sabe. Era miúdo e ainda andava à procura da minha identidade; acontece-nos a todos, suponho. Naquela idade os ídolos são a vida de um gajo; e uns tipos que viviam sob a imagem do surf, dos carros e das miúdas faziam de mim um alvo fácil. Porém, havia também a música: foi nesse dia cinzento que comecei a gostar realmente de música: ouvi o disco e, durante aqueles quarenta minutos, saí de mim, tive uma epifania. Penso que foi a partir desse momento que desejei ser músico; desejei poder provocar nos outros uma reacção semelhante à que acabara de ter.»
Marcus passou à acção: convenceu dois amigos a juntarem-se-lhe na aventura e, pouco depois, adoptando o nome de um conto da escritora Astrid Lindgren («É uma história da qual todos gostávamos e pensámos que seria um bom nome para a banda.»), nasciam os Lionheart Brothers. A formação actual, todavia, apenas tomaria forma dois anos mais tarde. «Os Lionheart Brothers já existiam antes do Audun [Storset, guitarrista] se juntar a nós. Ele era nosso fã e nós fãs dele, pelo que, quando o nosso guitarrista desistiu, não foi difícil convencê-lo a juntar-se-nos. Eu já o tinha ouvido várias vezes ao vivo, e em todas elas havia saído do recinto completamente atónito. Ele utilizava afinações pouco convencionais, e a forma como distorcia ligeiramente a voz era muito sofisticada e agradável ao ouvido. Soube que tínhamos pernas para andar quando começámos a tocar e a gravar ‘demos’ juntos.»
Depois de encabeçarem os tops de vendas na Noruega («Bem, a Noruega é um país pequeno, pelo que não é preciso vender muitos discos para se encabeçar essas listas.»), partiram para Austin, Texas, a fim de participarem no conceituado festival South by Southwest («Foi estupendo! Não sou um grande fã de festivais: a oferta acaba sempre por se sobrepor ao tempo e à atenção dispensada a cada concerto – e o South by Southwest é, nesse aspecto, um festival levado ao seu extremo. No entanto, é sempre bom participar neste tipo de eventos; gosto de tocar para públicos diferentes.») e, logo depois de uma pequena digressão pela Noruega, viram editado o seu registo de estreia no Reino Unido e o primeiro single deste, “Hero Anthem”, ser eleito pela Q Magazine como ‘Track of the day’, no passado mês de Outubro.
Não é, portanto, de estranhar que o grupo sonhe com o futuro: «Estamos a planear fazer uma paragem para escrevermos canções novas. Mas antes ainda temos umas datas na Suécia, na Dinamarca e no Reino Unido. Talvez depois disso… A escrita e os ensaios são as partes que mais nos agradam. O processo de ver um álbum a tomar forma interessa-nos muito mais do que a vida de estrelas de rock: somos noruegueses e, naturalmente, muito caseiros.»
Patchwork
Parecem não haver finais felizes na Noruega. Marcus Forsgren, cantor e guitarrista dos Lionheart Brothers, é bastante claro: «Norway has the highest suicide rate after Japan.» Ou seja: «A Noruega tem a taxa de suicídio mais alta a seguir ao Japão.» Não estranhamos: da Noruega apenas conhecemos imagens de superfícies geladas, escassez de bacalhau e grupos de black metal. Pensamos: É um cenário desolado, demasiado desolado para que dele possa nascer algo que ponha fim à sua dolência. Supomos; supomos algo e ao fazê-lo incorremos no erro de confundir o mundo real com o outro com que amolecemos o nosso desconhecimento.
A noção de erro, essa, torna-se por demais evidente quando da Noruega nos chega uma banda que parece viver numa partitura de Gershwin, cheia de cor, ritmo e movimento. Não é exagero: Dizzy kiss, o álbum de estreia dos Lionheart Brothers, troca as voltas ao frio, ao bacalhau e ao black metal, ao assumir de peito aberto influências que passam pelos Beach Boys, Byrds e Zombies, ou seja, tudo malta da pesada, mas também por rapazes mais novinhos, daqueles a quem é difícil explicar o que é um pasodoble ou que os cromos com os jogadores do Benfica se colavam nas cadernetas com batata cozida. Falamos aqui da leveza pop dos Tahiti 80 e da propulsão pós-motorika dos Stereolab que, somadas à elegância das harmonias da malta mais entradota, resultam num achado cuja audição revela, por vezes, algo mais do que a mera soma das partes e nos leva a pensar nos XTC (sim, essa maravilhosa instituição). É que os Lionheart Brothers, apesar das diferenças, parecem querer entrar no jogo inventado pela banda britânica no magnífico Black Sea, de 1980. Ou seja, existe em Dizzy kiss uma vontade explícita de juntar o melhor de uma época dourada da produção musical com a produção actual, sendo que as principais diferenças entre ambas as bandas estão no desfasamento temporal e no facto de Andy Partridge ser um dos melhores escritores de canções do século XX, o que, naturalmente, levou a que os XTC, ao contrário dos Lionheart Brothers, fossem mais banda do que influências. Ainda assim, Dizzy kiss destaca-se da restante produção fonográfica de 2007 pela veemência e amplitude com que é capaz de trabalhar estéticas até agora apartadas. Se a escrita das canções é de uma qualidade que há muito julgávamos desaparecida, os arranjos não nos merecem menores elogios: momentos há que nos parecem saídos da pena de um Brian Wilson em dia mais ou menos, o que, para quem não nasceu Brian Wilson, ou vá, Judee Sill, corresponde a um bem-aventurado estado de graça.
The Lionheart Brothers, Dizzy kiss (Racing Junior, 2007)
Escrito em 2007 para o Bodyspace.
Ao ouvir Dizzy kiss, o álbum de estreia dos noruegueses Lionheart Brothers, é-nos difícil pensar num país frio e pardacento. É-nos também bastante complicado pensar em Dizzy kiss enquanto álbum de estreia, tal é o grau de maturidade que carrega em cada canção. Marcus explica-nos a sua fórmula: «Ouço música desde que me conheço, vários tipos de música, de diferentes proveniências e épocas. Gosto muito dos CAN e dos Stereolab, mas também dos Beach Boys, Cocteau Twins, The Cure, The Stooges e Steve Reich. Neste momento ando a ouvir muito Edward Grieg; é um compositor erudito norueguês que conseguiu combinar a tradição norueguesa com a vanguarda da época [mostrámos-lhe Fernando Lopes-Graça e gostou]. Também costumo ouvir, embora menos assiduamente, Gavin Bryars, Henry Cowell, Dimitri Shostakovich… imensa música erudita. Depois pego nos elementos que me interessam e começo a compor; não tenho fronteiras: não gostaria de reger-me apenas por um único rótulo e dizer ‘nós tocamos pós-rock’ ou ‘nós tocamos shoegazing…’. Penso que devemos procurar as nossas influências em vários contextos, porque um desafio só o é verdadeiramente quando o enfrentamos pela primeira vez.»
Mas se os Lionheart Brothers se fazem de várias influências, o resultado não poderia ser mais coeso. Afunilando a variedade apresentada por Marcus ser-nos-ia possível apontar as mais óbvias: Beach Boys, Strawberry Alarm Clock, Tahiti 80 e Stereolab. O músico escapa-se, porém, aos demais e principia o relato de uma lembrança que, a julgar pelo tom com que as palavras lhe saem da boca, lhe é muito querida. Lembra-se perfeitamente do dia em que descobriu Pet sounds, dos Beach Boys: «Foi num dia cinzento, já se sabe. Era miúdo e ainda andava à procura da minha identidade; acontece-nos a todos, suponho. Naquela idade os ídolos são a vida de um gajo; e uns tipos que viviam sob a imagem do surf, dos carros e das miúdas faziam de mim um alvo fácil. Porém, havia também a música: foi nesse dia cinzento que comecei a gostar realmente de música: ouvi o disco e, durante aqueles quarenta minutos, saí de mim, tive uma epifania. Penso que foi a partir desse momento que desejei ser músico; desejei poder provocar nos outros uma reacção semelhante à que acabara de ter.»
Marcus passou à acção: convenceu dois amigos a juntarem-se-lhe na aventura e, pouco depois, adoptando o nome de um conto da escritora Astrid Lindgren («É uma história da qual todos gostávamos e pensámos que seria um bom nome para a banda.»), nasciam os Lionheart Brothers. A formação actual, todavia, apenas tomaria forma dois anos mais tarde. «Os Lionheart Brothers já existiam antes do Audun [Storset, guitarrista] se juntar a nós. Ele era nosso fã e nós fãs dele, pelo que, quando o nosso guitarrista desistiu, não foi difícil convencê-lo a juntar-se-nos. Eu já o tinha ouvido várias vezes ao vivo, e em todas elas havia saído do recinto completamente atónito. Ele utilizava afinações pouco convencionais, e a forma como distorcia ligeiramente a voz era muito sofisticada e agradável ao ouvido. Soube que tínhamos pernas para andar quando começámos a tocar e a gravar ‘demos’ juntos.»
Depois de encabeçarem os tops de vendas na Noruega («Bem, a Noruega é um país pequeno, pelo que não é preciso vender muitos discos para se encabeçar essas listas.»), partiram para Austin, Texas, a fim de participarem no conceituado festival South by Southwest («Foi estupendo! Não sou um grande fã de festivais: a oferta acaba sempre por se sobrepor ao tempo e à atenção dispensada a cada concerto – e o South by Southwest é, nesse aspecto, um festival levado ao seu extremo. No entanto, é sempre bom participar neste tipo de eventos; gosto de tocar para públicos diferentes.») e, logo depois de uma pequena digressão pela Noruega, viram editado o seu registo de estreia no Reino Unido e o primeiro single deste, “Hero Anthem”, ser eleito pela Q Magazine como ‘Track of the day’, no passado mês de Outubro.
Não é, portanto, de estranhar que o grupo sonhe com o futuro: «Estamos a planear fazer uma paragem para escrevermos canções novas. Mas antes ainda temos umas datas na Suécia, na Dinamarca e no Reino Unido. Talvez depois disso… A escrita e os ensaios são as partes que mais nos agradam. O processo de ver um álbum a tomar forma interessa-nos muito mais do que a vida de estrelas de rock: somos noruegueses e, naturalmente, muito caseiros.»
Patchwork
Parecem não haver finais felizes na Noruega. Marcus Forsgren, cantor e guitarrista dos Lionheart Brothers, é bastante claro: «Norway has the highest suicide rate after Japan.» Ou seja: «A Noruega tem a taxa de suicídio mais alta a seguir ao Japão.» Não estranhamos: da Noruega apenas conhecemos imagens de superfícies geladas, escassez de bacalhau e grupos de black metal. Pensamos: É um cenário desolado, demasiado desolado para que dele possa nascer algo que ponha fim à sua dolência. Supomos; supomos algo e ao fazê-lo incorremos no erro de confundir o mundo real com o outro com que amolecemos o nosso desconhecimento.
A noção de erro, essa, torna-se por demais evidente quando da Noruega nos chega uma banda que parece viver numa partitura de Gershwin, cheia de cor, ritmo e movimento. Não é exagero: Dizzy kiss, o álbum de estreia dos Lionheart Brothers, troca as voltas ao frio, ao bacalhau e ao black metal, ao assumir de peito aberto influências que passam pelos Beach Boys, Byrds e Zombies, ou seja, tudo malta da pesada, mas também por rapazes mais novinhos, daqueles a quem é difícil explicar o que é um pasodoble ou que os cromos com os jogadores do Benfica se colavam nas cadernetas com batata cozida. Falamos aqui da leveza pop dos Tahiti 80 e da propulsão pós-motorika dos Stereolab que, somadas à elegância das harmonias da malta mais entradota, resultam num achado cuja audição revela, por vezes, algo mais do que a mera soma das partes e nos leva a pensar nos XTC (sim, essa maravilhosa instituição). É que os Lionheart Brothers, apesar das diferenças, parecem querer entrar no jogo inventado pela banda britânica no magnífico Black Sea, de 1980. Ou seja, existe em Dizzy kiss uma vontade explícita de juntar o melhor de uma época dourada da produção musical com a produção actual, sendo que as principais diferenças entre ambas as bandas estão no desfasamento temporal e no facto de Andy Partridge ser um dos melhores escritores de canções do século XX, o que, naturalmente, levou a que os XTC, ao contrário dos Lionheart Brothers, fossem mais banda do que influências. Ainda assim, Dizzy kiss destaca-se da restante produção fonográfica de 2007 pela veemência e amplitude com que é capaz de trabalhar estéticas até agora apartadas. Se a escrita das canções é de uma qualidade que há muito julgávamos desaparecida, os arranjos não nos merecem menores elogios: momentos há que nos parecem saídos da pena de um Brian Wilson em dia mais ou menos, o que, para quem não nasceu Brian Wilson, ou vá, Judee Sill, corresponde a um bem-aventurado estado de graça.
The Lionheart Brothers, Dizzy kiss (Racing Junior, 2007)
Escrito em 2007 para o Bodyspace.
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Bor Land, Oito biscoito
Faz-se de oferecida, lança charme «a melómanos, românticos sem depressões, domésticas com cozinhas modernas, moças de sonhos precisos, rapazes de corações coloridos, bancários com lingerie subversiva, transeuntes ansiosos por chegar a casa». É assim a Bor Land, editora nortenha que ao longo destes últimos oito anos juntou artistas consagrados (Carlos Bica, Gustavo Costa aka Most people have been trained to be bored) a outros que em nada fizeram por desmerecer a confiança neles depositada (Bypass, que com Mighty sounds pristine se tornaram na referência nacional do pós-rock; Norberto Lobo, que, em 2007, viu o seu Mudar de bina inscrito na lista de melhores discos do jornal Público; e Old Jerusalem, um dos nomes mais antigos da casa e, provavelmente, aquele que mais sucesso alcançou).
Por tudo isto, parabéns; pelo que há-de vir, obrigado.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
Música em imagens IV
Quarta parte de uma lista pictórica que reúne as minhas capas de discos favoritas. Algumas encerram discos soberbos; outras nem por isso.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
When the going gets tough
Depois
de, aparentemente, ter endossado a postura do democrata Barack Obama no por
ventura decisivo debate que a opôs a Joe Biden (as sondagens da CNN deram a
vitória a Biden entre 56% dos eleitores indecisos), Sarah Palin, que não
conseguiu descrever a doutrina do presidente George W. Bush em assuntos
internacionais e que já antes, numa entrevista à CBS, se havia mostrado tosca
em várias afirmações (assegurou, por exemplo, saber de política externa porque
o Alasca, estado de que é governadora, se situa próximo da Rússia), vem agora
mudar de estratégia e, segundo a edição de hoje do Público, acusar Obama de ser
«amigo de terroristas», «ressuscitando a ligação do democrata a William Ayers,
um professor de direito de Chicago que nos anos ’60 foi um dos fundadores do
grupo radical Weather Underground, responsável por uma série de protestos
violentos contra a guerra do Vietname e classificado pelo FBI como uma
organização terrorista». É o espernear do acossado.
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Soft Machine: A revisão da máquina
Foi para dentro de meia dúzia de anos que migraram os dias de quatro pessoas. Subtraíram-se aos seus formatos pecaminosamente pequenos e, alertados para o que estava à sua frente, abraçaram outras escalas, intemporais, inumanas, passando a carregar a fatalidade de um instante que termina no preciso momento em que é capturado, irrepetível que é até mesmo para os seus próprios criadores.
Foram depois os anos que migraram para um punhado de décadas. A música dos Soft Machine entranhou-se em algumas, ausentou-se de outras; pertenceu ao domínio do pretérito perfeito, à memória dos dias colhidos, à inércia das horas hirtas com feições diluídas pelo iodo do tempo. Aproximou-se do silêncio; não desse silêncio que adormece na certeza de que irá acordar num novo amanhecer, mas do outro, daquele que é próprio dos amordaçados, de quem da vida já nada espera. Enganava-se, porém. Sabemos hoje que não seria para sempre: a Sony reeditaria, em 1999, os cinco títulos que compõem o catálogo lançado pela CBS (divisão britânica da Columbia, hoje propriedade da Sony), na década de ’70. Foi a medo: dois álbuns num só suporte (alguns), livretos espartanos (com erros ortográficos), som não remasterizado, ausência de faixas bónus, enfim, um pequeno desastre para todos aqueles que há muito ansiavam pela chegada dessas edições. Foi, contudo, um começo, um renascer que trazia no seu regaço álbuns tão marcantes como Third(1970) ou Fourth (1971), peças únicas da formação Dean/Hopper/Ratledge/Wyatt cujo maior encanto provinha do contrabalançar dos caminhos futuros ambicionados por Mike Ratledge, o jazz e a música minimal repetitiva – leia-se A Rainbow in Curved Air (1969), de Terry Riley –, com a espontaneidade rock e zéfiro psicadélico de Robert Wyatt.
Mas a tensão que accionava os pistões da Soft Machine era a mesma que lhe dividia os componentes: «[A banda] seria sempre tensa por causa das características envolvidas: rapazes jovens, na casa dos vinte, envolvidos com maquinaria perigosa», revelou Hugh Hopper este ano à revista Uncut. No final de 1972, depois de afastados Kevin Ayers (descobriria na sua carreira a solo os talentos de Mike Oldfield e Bridget St. John) e Daevid Allen (fundaria os Gong), chegaria a vez de também Robert Wyatt abandonar o grupo. Depois de, em 1970, ter editado o seu álbum de estreia a solo, o experimental The End an Ear, Wyatt convocaria algumas luminárias da então emergente cena musical da Cantuária e formaria os Matching Mole – que em bom trocadilho francófono significa Soft Machine –, com quem gravaria apenas dois álbuns, Matching Mole (1972) e Matching Mole's Little Red Record (1972), antes de sofrer um acidente que o deixaria paraplégico e com uma obra-prima nas mãos: o insuperável Rock Bottom (1974).
Começava então a parceria – chamemos-lhe assim – entre os Soft Machine e os Nucleus, grupo que, liderado pelo brilhante trompetista Ian Carr, fez o equivalente em solo britânico ao que Miles Davis fez em solo estadunidense, sendo certo que os Soft Machine também já nessa altura brincavam ao rock mascarado de jazz. De resto, o contar dos anos mostrou ao grupo que o afastamento dessa receita levaria a uma menor atenção por parte do público; dir-se-ia que os Soft Machine haviam crescido cedo demais; entenderam ser a alucinação do pesadelo a vontade de continuar independentemente da frustração perante algo sempre inacabado, mas à vista, quase ao alcance da mão, e no entanto, inalcançável.
A capa de Fourth deixava desde logo antever o futuro do grupo: Elton Dean e Hugh Hopper no verso; Robert Wyatt e Mike Ratledge na frente. Olhando para ela, é-nos fácil perceber que enquanto Wyatt procurava a porta de saída, Ratledge estava já a medir o espaço que possuía diante de si – de braços cruzados, olha-nos com o mesmo olhar fixo das estátuas, imunes ao tempo e dele testemunhas; um olhar que traduz na perfeição a música que não se ouve, mas para onde se mergulha enquanto o quarteto assina a sua derradeira obra a merecer-nos interjeições entusiasmadas. E é estranho: Fourth começa por ser uma tentativa, uma dor de cabeça para quem ainda há pouco havia lançado uma obra-prima. Mas lá arregaçaram as mangas, e apenas por esse gesto, ou pela forma como terá sido feito, saberíamos que o acto anterior não fora apenas um bafejo da sorte, mas antes o resultado do temperamento de quem aos vinte anos possuía já a maturidade suficiente para enfrentar, pelo menos, a próxima vintena.
Assim, se “Teeth” tinha o condão de conciliar Ratledge e Wyatt por debaixo de um belíssimo solo de Dean, “Virtually” combinava magistralmente, ao longo dos seus quatro andamentos, texturas modais riquíssimas e entusiasmantes improvisações sobre progressões harmónicas, cuja estranheza – no melhor dos sentidos, entenda-se – faria corar Berlioz.
(“Out-Bloody-Rageous”. Os Soft Machine em 1970,
com o acréscimo de Lyne Dobson no sax soprano.)
A ferrugem nunca dorme
A correr, a deixar de correr, a olhar para trás. Fifth (1972) é uma ilusão de alento, um raspar de ferrugem onde antes ouvíamos um som que de tão cristalino se podia ouvir a quilómetros de distância, assim, tão alto como só as coisas livres conseguem. Ainda que tenha beneficiado com a breve presença do baterista australiano Phil Howard, um turbilhão sónico que quase remetia Hopper e Dean à condição de excedentes, sendo por isso substituído pelo ex-Nucleus John Marshall, Fifth não escapou ao afunilamento estético causado pela saída de Wyatt. Assim, enquanto o jazz rock estadunidense (Mahavishnu Orchestra, Return to Forever, Weather Report) lançava raízes na escrita apoiada por enormes quantidades de improvisação, os Soft Machine invertiam o seu sentido de marcha e tornavam-se mais próximos do conservadorismo defendido por Charles Tolliver. Dir-se-ia, pois, que o grupo tinha os dias por ordem prontos a usar; e por estarem ordenados podiam ser lançados ao ar para que o vento com eles desenhasse as variações das horas; e por estarem ordenados podiam ser contados. Fifth é, por essa razão, um prenúncio de morte. À excepção de Six (1973), o grupo não mais mudaria a estrutura dos seus discos, mesmo após a saída de todos os seus membros fundadores – aconteceria no francamente mau Rubber Riff, de 1976, e no pouco mais que competente Land of Cockayne (1981), ambos presentemente descatalogados.
Entretanto, a ferrugem carcomia a máquina. Sendo Dean um improvisador nato, logo se apercebeu da incompatibilidade existente entre a sua veia de criador de instantâneos e o rigor milimétrico que então vinha à tona. O seu substituto, o ex-Nucleus Karl Jenkins, acentuaria essa tendência enquanto principal compositor da fase tardia do grupo, levando à saída de Hopper que, curiosamente, iria encontrar-se várias vezes com Dean ao longo da sua carreira a solo – mas já antes havíamos assinalado o carácter profético da capa de Fourth.
Six irrompe assim como o segundo momento de uma difícil transição. Se em Fifth, o grupo avançou cegamente para aquilo que julgava ser terra firme (a tal ilusão de alento), em Six decidiu tactear primeiro antes de avançar. O resultado, um disco inteiramente gravado ao vivo e um outro com experiências mais ou menos pessoais gravadas em estúdio (quase ao estilo de Ummagumma (1969), dos Pink Floyd), ainda que longe do brilhantismo de outros dias, permitiu ao grupo o recuperar de fôlego necessário para voltar aos grandes discos com Seven.
Já sem Hopper, e com Ratledge lentamente a abdicar da escrita a favor de Jenkins, Seven é um registo curioso. É certo que lhe falta a irregularidade organizada de Third, esse quebra-cabeças pacientemente montado de forma a tornar-se num uno e inseparável ser; contudo, não deixa de ser um ensejo que para sempre se cola a quem o ouve.
Depois de Seven, e uma vez findo o contracto com a CBS, os Soft Machine não eram mais do que a designação que anos antes haviam pedido emprestada a Burroughs. Fechava-se depois a casa: tiravam-se os reposteiros e as cortinas, embrulhava-se a louça, cobriam-se os sofás de lençóis brancos, verificavam-se as janelas e, por fim, dava-se a volta à chave.
Passados oitos anos sobre o relançamento catastrófico destas obras, a Sony, talvez aproveitando o facto de 2007 ser um bom ano para os Softs (atenção aos discos novos de Robert Wyatt, Kevin Ayers e Soft Machine Legacy), volta agora a disponibilizar o catálogo Soft Machine/CBS, desta feita, e porque os tempos são de exigência, com todas as regalias que o mercado impõe; ou seja, os luxuosos mini-LPs japoneses devem ter ensinado à Sony o significado da expressão “target”. Mas isso, claro, fica aqui entre nós.
Third: À terceira foi de vez
Existem discos que se sentam à mesa no lugar de honra, ali no topo, dobrados sobre o prato cheio e de guardanapo amarrado ao pescoço. Distinguem-se da multidão: possuem a cor da elegância e bom trato, e emanam um aroma que nos transporta em direcção ao passado, trazendo para cima da mesa todas aquelas doces memórias do tempo em que com eles travámos conhecimento. Entretanto, o êxtase de um primeiro encontro já lá vai; ouvir um disco desses já não oferece o arrebatamento de quem descobre pela primeira vez um corpo. No entanto, ao procuramos as razões que nos levaram a um tal estado (se é que é do domínio da razão), descobrimos as mesmas feições, os mesmos jeitos que antes conhecíamos de cor.
Third, dos Soft Machine, é um desses discos. É uma obra que subtilmente se nos entranhou na carne e à qual reconhecemos cada sussurro, mas também cada explosão de vivacidade que a impõem enquanto força maior – essa força que nos obriga a crescer, mas que nos conserva o sonho no olhar.
Editado em 1970, marca o rompimento definitivo com a aura psicadélica, e algo nonsense, de Kevin Ayers. Com Miles Davis a editar In a Silent Way (1969), Bitches Brew (1970) e A Tribute to Jack Johnson (1970) do outro lado do Atlântico, cabia agora aos Soft Machine a árdua tarefa de levar por diante, em solo britânico, a bandeira do jazz rock. E assim o fizeram, inspirando toda uma série de músicos, maioritariamente oriundos da região da Cantuária, a seguirem-nos.
Entretanto caminhavam por caminhos nunca antes percorridos; as únicas pegadas que poderiam eventualmente ver, caso olhassem para trás, seriam as suas. Robert Wyatt foi o único a fazê-lo: a sua composição, “Moon in June”, data de 1967. Essa diferença é particularmente notória quando contextualizada: num total de quatro temas, um por cada superfície dos dois discos de vinil, “Moon in June” é por ventura o momento mais comedido ao nível da improvisação, sendo que a cumplicidade que une os músicos nos restantes três temas desaparece quase por completo nesta antevisão do que seria o primeiro álbum a solo de Wyatt.
Apesar disso, “Moon in June” não é nem de longe o ponto mais fraco ou menos inventivo do álbum. Dos quatro muros guarnecidos com cacos de garrafas, apenas um, este, tem manchas de sangue e usa lã sobre a pele. Os outros terão, no entanto, outros encantos: o primitivismo de “Facelift” lança âncoras em estruturas megalíticas, sentindo-se-lhe a rudeza de um rapaz que atira pedras aos pássaros, apenas porque lhes vê no descanso uma afronta a desígnios de mais alta ordem;
“Slightly all the Time” é, por seu lado, um estupendo exercício de (inspirar fundo) straight-foward jazz rock que deve tal adjectivação ao facto de jamais ter sido igualado; e “Out-Bloody-Rageous” apanha-nos de mansinho, quase em estado de bonança após a audição de “Moon in June”: no início são apenas pequenas células que só mais tarde se multiplicam até formarem uma camada tão densa que, ao fendê-la com a mão, quase se ouve zoar, atingindo-se depois o ponto de saturação em que tudo parece dobrar-se sob o peso destas células fortemente interligadas, quais músculos que se juntam em uníssono para ensaiarem acções futuras.
Third: Facelift, Slightly All the Time, Moon in June, Out-Bloody-Rageous; Fourth: Teeth, Virtually, Pt. 1, Virtually, Pt. 4; Fifth: All White, Pigling Bland, Bone; Six: The Soft Weed Factor, Chloe and the Pirates; Seven: Nettle Bed; Day's Eye.
Escrito em 2007 para o Bodyspace, a propósito da reedição dos álbuns Third (edição original: CBS 1970), Fourth (edição original: CBS 1971), Fifth (edição original: CBS 1972), Six (edição original: CBS 1973) e Seven (edição original: CBS 1973).
Música em imagens III
Terceira parte de uma lista pictórica que reúne as minhas capas de discos favoritas. Algumas encerram discos soberbos; outras nem por isso.
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